segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

“Endurecimento de Dilma com centrais promove 'limpeza'” (Fonte: Folha)

“UIRÁ MACHADO
DE SÃO PAULO
Acabou o monopólio da política estabelecido por Lula, afirma o sociólogo Luiz Werneck Vianna.
Autor de livros como "Liberalismo e Sindicato no Brasil", Vianna vê no endurecimento da presidente Dilma Rousseff com as centrais sindicais um sinal de que o novo governo, constrangido pelas circunstâncias, promove uma "limpeza do Estado".
O resultado, diz ele, é que os conflitos são retirados do Estado e devolvidos à sociedade, onde podem ser processados democraticamente.
Para ele, o governo Dilma representa o momento mais forte da afirmação da ordem burguesa no Brasil, num processo de racionalização do capitalismo que começa com Fernando Henrique Cardoso e passa por Lula.
Folha -- O sr. tem afirmado em suas colunas no jornal "Valor Econômico" que a derrota do sindicalismo não foi tanto de natureza econômica, mas política. A vitória governista também é mais política do que fiscal?
Luiz Werneck Vianna -- No caso das centrais sindicais, é uma derrota política porque elas, na verdade, faziam parte do governo.
Para a presidente, acontece que ela fez uma campanha em uma conjuntura --nacional e internacional-- e, terminada a disputa, o cenário mudou.
A conjuntura internacional mudou com o levante democrático-popular do mundo árabe. Internamente, está vindo agora a conta das políticas que foram seguidas desde a grande crise financeira de 2008.
Isso tudo implica cortes, e contar com um adversário instalado ao seu lado, dentro do Estado, no governo, como estão, ou estavam, as centrais sindicais, é muito difícil. Está havendo aí uma limpeza de terreno.
Essa crise vai ser enfrentada a partir de que lógica? Da racionalização da administração, da economia e da gestão.
Essa racionalização é também a limpeza do Estado, a fim de que os tomadores de decisão, que são basicamente [a presidente] Dilma [Rousseff] e [Antonio] Palocci [ministro da Casa Civil], tenham liberdade para operar.
Tudo isso tende a delimitar o sindicalismo ao seu papel, digamos, de mercado. Está lutando por salário, por mudanças tópicas. Mas o fato é que o sindicalismo com Lula sonhou mais alto.
É como se agora fosse devolvido ao seu devido lugar?
Não sei se é o lugar devido, mas o encanto acabou.
Esse movimento é apenas uma reação a essa mudança de conjuntura ou é um esforço de diferenciação em relação ao governo anterior?
É fundamentalmente a conjuntura. Agora, isso enseja mudanças que até são funcionalmente adequadas ao perfil da nova presidente.
Ela vem do mundo da racionalização, vem do mundo da gestão, e tem dificuldades de operar no mundo da política.
Mas a questão decisiva é que ela tem que operar nessa direção porque está sendo constrangida pela mudança nas circunstâncias.
Pois uma coisa é certa: se esse governo deixar voltar a inflação, ele acaba. O ciclo Lula acaba se a inflação volta.
Se o conflito com as centrais sindicais era inevitável, quanto da forma como ele ocorreu decorre de uma diferença de estilo entre Dilma e Lula?
É difícil ponderar. É muito difícil também dizer que isso não teve influência. Mas essa influência não foi decisiva, não foi determinante.
É claro que, com Lula, os sindicatos até podiam ir para casa achando que tinham perdido, mas reclamando menos. Ele faria de tudo para manter os sindicatos dentro do governo.
Agora, o fato que não está sendo devidamente percebido é que o mundo sindical brasileiro de hoje é uma potência. As pessoas ainda pensam o sindicalismo brasileiro com os olhos dos anos 80, 90. Ele hoje é uma potência, um personagem muito influente na vida republicana, e não é mais passível de controle tal como foi o sindicalismo lá de trás.
Pelo volume de recursos. Pela expansão dos sindicatos, da filiação. Pelo tamanho da sua imprensa especializada. Pela envergadura dos seus encontros. A Conclat no ano passado reuniu 30 mil pessoas. Em 1981 teve 4.000 pessoas. E além do mais, os sindicatos estão em feroz competição uns com os outros.
É só olhar os recursos midiáticos de que eles dispõem hoje. Programas de TV, de rádio, boletins, jornais, revistas. Sem contar dois aparelhos técnico-científicos para observar as relações entre capital e trabalho que são os mais importantes do país: o Dieese [Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos] e o Diap [Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar]. Além disso, eles têm profunda articulação com o mundo acadêmico.
E no entanto sofreram uma forte derrota com a questão do mínimo...
Não, eles foram apenas deslocados. É claro que não sairão do governo prazerosamente, vão resistir. Vão tentar converter sua presença sindical em presença política. Eles vão se alinhar ao governo, mas com um constrangimento evidente.
Mas a bancada sindical é muito expressiva e atravessa diferentes partidos. E quando vier a previdência, ela vai se alinhar tão facilmente?
O sindicalismo, saindo do governo, vai ter que buscar o Congresso e as ruas.
É evidente que é. Significa autonomia do movimento sindical.
É possível imaginar que o governo Dilma pode vir a enfrentar grandes mobilizações de massa como as que ocorreram durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas não sob Lula?
Bola de cristal não vale... Agora, muitas sindicalistas influentes estão comparando a política atual do governo Dilma com as reformas presumidamente neoliberais praticadas durante o ciclo Fernando Henrique. Essa tradução está sendo feita por eles.
É possível traçar alguma linha de FHC a Dilma, passando por Lula?
O que está havendo, desde FHC, é uma enorme afirmação da ordem burguesa no Brasil, de racionalização do capitalismo brasileiro. Isso começou com FHC, continuou com Lula e tem agora com Dilma o seu momento mais forte. Inclusive por causa das novas circunstâncias.
O Brasil está ingressando como grande jogador no cenário internacional. E esse levante democrático do mundo árabe só reforça a posição brasileira nessa direção. Muito lá para trás ficou o Chávez, por exemplo.
Houve uma mudança de época. O governo Dilma começa quando uma mudança de época se consagra à vista de todos --num lugar inesperado, diga-se de passagem.
É correto dizer que Dilma, em comparação com Lula, deve ampliar os conflitos?
Não amplia, ela libera os conflitos do Estado e os devolve para a sociedade, onde vão ser processados democraticamente. Isso, a meu ver, pode conduzir a uma boa política se houver atores que saibam interpretar essa situação e se comportar de acordo com ela.
Por ora, não. Mas o fato é que há uma vida não registrada, associativa, muito poderosa, bem mais poderosa que no Egito. Mas não estou querendo dizer que o Brasil vai virar Egito, não.
Em contrapartida, esse aumento de eventual pressão das ruas, ou de aumento do espaço da atuação da sociedade civil, leva a uma maior pressão sobre esse governo, que se pretende racional. Como resolver a equação?
Isso não é necessariamente ruim. O governo pode manobrar. É o espaço democrático, é o que vive a França, a Inglaterra.
Esse diagnóstico sugere, ao contrário do que alguns líderes de oposição têm dito, que esse princípio de governo Dilma não tem nada de autoritário...
Não há um "rolo compressor" sobre os partidos da oposição?
Nesse sentido, sim. Mas essa é uma manifestação legítima na política. Quem tem maioria vai lá e se expressa. Autoritarismo é burlar a lei, passar por cima dela, governar por decisões pessoais. Não se trata disso. Essa questão do salário mínimo, por exemplo, provavelmente vai acabar no Supremo Tribunal Federal, que vai dizer se é constitucional ou não. Tudo dentro cânon democrático. Enfim, uma sociedade de classes moderna está emergindo por aí.
E o governo Dilma veio cumprir um papel na condução desse processo?
Não sei se ele quer isso. Estou falando que esse governo está agindo numa direção que favorece esse processo e o faz porque está sendo constrangido. Não estou dizendo que isso é um projeto. Aliás, eles não têm projeto de nada. Têm projeto de fazer do aprofundamento da experiência burguesa uma forma de passagem para o socialismo, por acaso? Isso é conversa. Nem a militância petista tem essa crença.
Nesse cenário, os partidos podem ganhar fôlego?
Sim, abriram-se as possibilidades. É uma conjuntura mais propícia do que a anterior, porque Lula exercia o monopólio da política. Só ele fazia política no Brasil.
Onde ele fazia isso? No Estado, e com todas as classes mobilizadas no interior do Estado, onde ele ouvia a todos, contemplava cada um na medida das possibilidades e arbitrava. Por isso agora não é mais monopólio. A política está se democratizando.
Mas os partidos existentes, evidentemente, estão com dificuldades de aproveitar a situação. Basta ver sua ausência no mundo popular.
Há espaço para um novo partido no Brasil?
Eu gostaria muito que sim, embora eu não tenha mais idade para essas veleidades. Gostaria muito que surgisse, sim.
Socialista, democrático, popular. O PSOL não conseguiu prosperar. É difícil, porque, assim como outros, estão muito referidos ao passado, a tradições que os árabes mandaram para o lixo da história, ao que tudo indica. Se havia um lugar difícil para isso acontecer era lá, e aconteceu.
Não adianta querer ofuscar a vista diante desse fenômeno, que é radioso, luminoso. Não importa no que isso vai dar, não dá para prever. O que já aconteceu é de significação histórico-universal.
Houve uma mudança em escala de época. Um processo irreversível.
Há necessidade de uma reforma política?
Total. Não à toa está vindo agora, como necessidade de racionalizar essa política, inclusive para poder tirar, diminuir a presença do Estado nela.
O Estado burguês não pode ficar embaraçado na administração de todos os conflitos existentes. Ele precisa liberar esses conflitos para que sejam processados na sociedade.
Precisamos de uma política bem ordenada, e, para isso, a reforma é necessária. Alguma coisa vai sair, porque, do jeito que está, tornou-se inviável. Todas as questões se tornam de Estado, resolvidas dentro do Estado, que se perverte. Fica um Estado barroco diante de uma sociedade moderna, de uma economia moderna. É uma contradição em termos.”





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