"Após 11 anos, o fantasma do racionamento de energia elétrica voltou a rondar o Brasil. Com os reservatórios das hidrelétricas, responsáveis por 80% da eletricidade do país, nos níveis mais baixos desde 2001, para aumentar a segurança do sistema e afastar o risco de escassez, o governo teve de acionar as térmicas, que pela primeira vez na história responderam por cerca de 20% da energia consumida.
Passado o susto, o risco de racionamento é descartado para 2014, mas a fragilidade do sistema interligado nacional expõe os desafios ao setor elétrico nesta década. Para atender a um crescimento da demanda anual de cerca de 4% ao ano e com o consumo tendo voltado a patamares pré-racionamento, ganhará peso ao longo dos próximos meses o debate sobre como planejar o futuro da matriz e sobre a construção de hidrelétricas com grandes reservatórios, tema que opõe ambientalistas, governos e empresários. O assunto se torna mais explosivo se analisado um dado: 35% do potencial hidrelétrico nacional foi aproveitado, enquanto os 65% restantes estão na região amazônica.
Desde a década de 1990, por conta de pressões ambientais, o Brasil tem privilegiado investimentos na construção de usinas hidrelétricas a fio d’água, ou seja, sem grandes reservatórios de armazenagem, ao contrário do que se via nas décadas de 1970 e 1980. “Antes tínhamos reservatórios que permitiam que pudéssemos armazenar água por dois ou três anos, o que ampliava a segurança do planejamento. Ao construir usinas a fio d’água, viramos reféns da chuva”, afirma o físico José Goldemberg, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP). O avanço das hidrelétricas na região amazônica tem incorporado o conceito das usinas a fio d’água, que, por aproveitarem a vazão do rio, dispensam a construção de grandes reservatórios como feitos antes, reduzindo a área alagada. A questão é que, ao se dispensar a construção de grandes reservatórios, diminui-se a energia armazenada, porque no período de chuvas os reservatórios acumulam água para geração posterior.
“A opção por usinas a fio d’agua, combinada com as características geográficas e hidrográficas da região Norte, onde elas estão concentradas, levará à construção de usinas com menor fator de capacidade e à diminuição da regularização dos reservatórios do país”, diz o presidente do Conselho de Energia da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), Armando Guedes. “Isso significa antecipar a intensificação da inserção de termelétricas na base de geração, o que afetará os custos de geração, a qualidade ambiental de nossa matriz e nossa segurança energética.” Estudo da entidade aponta que, em 2001, a capacidade de regularização dos reservatórios – o quanto de energia o país pode armazenar na forma de água para suprir a demanda de energia – era de pouco mais de seis meses. Em 2012, a capacidade de regularização caiu para 4,91 meses.
A defesa pelas usinas com grandes reservatórios tem rendido criticas de ambientalistas. O Greenpeace contesta a visão alegando que não é apenas o custo econômico que deve ser visto, mas o impacto sobre pessoas, biodiversidade e o clima. Além disso, destaca que outras” fontes de energia, como usinas eólicas e solares, ganham competitividade. “As hidrelétricas com reservatório têm sua importância para o país. Mas, antes de construir novas, o Brasil pode e deve investir em caminhos que gerem menos impactos socioambientais e que, ao mesmo tempo, tragam ganhos para o consumidor”, aponta Ricardo Bai-telo, coordenador da campanha de clima e energia do Greenpeace.
Para aumentar a segurança no abastecimento, o governo tem recorrido à geração de gás natural para térmicas e sinalizou com a contratação de carvão para construir novas térmicas nos próximos anos. “A suslentabilidade da matriz elétrica, hoje calcada na geração hidrelétrica, está em xeque”, diz Goldemberg. “Como não se vislumbra uma mudança nesta visão de construção das hidrelétricas no curto prazo, pela polêmica ambiental, precisaremos expandir a base térmica, seja com gás natural, seja com carvão, para ter uma segurança maior do sistema”, afirma o presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Paulo Godoy.
A capacidade instalada no Sistema Interligado Nacional (SIN) entre 2012 e 2021 deverá crescer 56%, saltando de 116,5 mil MW para 182,4 mil MW, segundo projeções do mais recente Plano Decenal elaborado pela EPE, O país contará com um acréscimo de 31,7 mil MW de geração hidrelétrica, com destaque para a região Norte. Cerca de R$ 150 bilhões em projetos na área de energia elétrica deverão ser contratados na iniciativa privada nos próximos cinco anos. Na área de geração, o principal destaque é a licitação da Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará, com 6.133 MW de capacidade, que poderá ser realizada no fim de 2014. Para reduzir o impado sobre o meio ambiente ao redor do rio Tapajós, o empreendimento pode utilizar um modelo de construção inédito no Brasil: as usinas plataformas, conceito inspirado nas plataformas de exploração de petróleo em alto-mar. Entre os projetos hidrelétricos, o governo estuda colocar em leilão, nos próximos cinco anos, os empreendimentos de Jatobá (previsão de ser licitado cm 2015 e com 2,3 mil MW de potência), Bem Querer (estimado para ser licitado em 2016 e com 700 MW de capacidade) e Simão Alto (previsto para ser leiloado em 2017 e com potência de 3,5 mil MW). Todos estão localizados na região Norte e, juntos, devem demandar mais de RS 20 bilhões em aplicações dos investidores. Mas colocar esses projetos de pé não será fácil.
Exemplo das dificuldades pode ser visto na usina de São Manoel, no rio Teles Pires, que o governo está tentando colocar no leilão A-5 a ser realizado no fim deste ano. A União tenta há mais de dois anos obter licenciamento para o empreendimento. Em 2010, o Ibama apontou uma série de deficiências no estudo de impacto ambiental da hidrelétrica, que teria capacidade para abastecer mais de dois milhões de residências. Em outubro de 2011, durante processo de audiência pública da discussão do empreendimento, quatro funcionários da Funai, dois da EPE e um antropólogo foram seqüestrados pela tribo indígena Kururuzinho, que não quer a usina. “Se conseguirmos avançar com as hidrelétricas, mesmo que sejam a fio d’água, será um progresso, mas temos visto muitas dificuldades. São Manoel não tem reservatório e seu impacto sobre a comunidade indígena é nulo”, afirma o presidente da EPE, Mauricio Tolmasquim.
As dificuldades sobre as hidrelétricas poderão reduzir a participação desta fonte ao longo das próximas décadas. Isso é o que aponta estudo da FGV Projetos sobre o cenário do setor elétrico até 2040. “Começamos a viver uma transição na matriz de energia elétrica, o custo marginal de expansão hidrelétrica será crescente e a fronteira de expansão, no cerrado e na Amazônia, trará uma grande sensibilidade ambiental, então deveremos ver uma diversificação maior de fontes”, afirma Otávio Mielnik, coordenador do estudo. Com base em três cenários e em projeções de crescimento da demanda até 2040 em cada um deles, a participação das hidrelétricas, hoje em cerca de 80%, poderá cair para 57% a 46% da geração de energia elétrica.
Construtoras e fabricantes de projetos de geração estão trabalhando em pedidos de hidrelétricas conquistados nos últimos anos, como os da usina dos rios Madeira, Belo Monte e Teles Pires, mas atrasos nos empreendimentos projetados para serem licitados nos próximos cinco anos poderão trazer queda no nível de atividade do segmento e mais fragilidade ao sistema. “Esperamos que as aprovações dos estudos ambientais desses projetos sejam agilizadas para evitar o comprometimento das metas de crescimento de suprimento de energia com a importante contribuição da geração hídrica. A MP579 impactou os investimentos em modernização de usinas cujas concessões não foram renovadas”, diz o presidente da Alstom, Marcos Costa.
Na área de transmissão, há outros obstáculos a serem superados. A malha de transmissão de energia do país deverá se expandir em 47,7 mil quilômetros nos próximos dez anos, atingindo uma extensão de 150 mil quilômetros em 2021. “O modelo licita vários trechos em diferentes regiões com várias empresas com níveis de qualidade diferentes de serviços”, afirma José I.uiz Alquéres, ex-presidente da Alstom e da Eletrobras. Há outro problema que poderia ser aperfeiçoado: em um dos leilões realizados neste ano, não foi arrematada a conexão entre Araraquara-Fernão Dias-Itatiba-Bateias, na região Sudeste, que permitiria o escoamento de parte da energia das usinas do rio Madeira e o aumento do intercâmbio para São Paulo e o Sul do país. O custo da terra na região Sudeste subiu muito. Como as linhas de transmissão passam por esses terrenos, os proprietários exigem indenização elevada para que os projetos de transmissão passem por eles. “Como construir linhas em áreas valorizadas e que tenham importância para o setor elétrico, como essa?”, questiona Tolmasquim. Uma das saídas seria elevar o valor-teto das tarifas a que estas linhas de transmissão seriam licitadas."