Países emergentes absorvem cada vez mais trabalhadores estrangeiros. No Brasil, o total da mão de obra vinda de fora dobra em quatro anos. Bons salários fazem as remessas de recursos disparar
O Brasil começa uma nova década e, com ela, um novo capítulo na história da imigração. Depois de um longo processo de estabilização econômica e da retomada do crescimento, o país embarcou de vez na mudança da rota mundial do emprego e da renda. Em vez de exportar mão de obra para as nações desenvolvidas, vistas, ao longo de anos, como verdadeiros eldorados, o Brasil registra recordes de importação de trabalhadores — fenômeno que se repete em boa parte dos países emergentes, ávidos por profissionais qualificados. Melhor: a maior parte dos que chegam tem garantido salários bem acima da média de mercado, fazendo com que, em apenas quatro anos, as remessas de renda do trabalho para os países de origem desse contingente estrangeiro mais do que triplicassem nos últimos cinco anos — de US$ 262 milhões, em 2005, para US$ 760 milhões (acumulados de janeiro a novembro de 2010).
“A nova direção do emprego e da renda é só um dos efeitos da mudança estrutural pela qual passa o mundo”, diz Marcos Troyjo, cientista político e professor visitante da Universidade de Sorbonne, na França. Ele ressalta que os países industrializados estão atolados na recessão, com índices recordes de desemprego. Nos Estados Unidos, que, até o início dos anos 2000, registravam o que os analistas chamam de pleno emprego — taxa de desocupação de 4,5% — agora convivem com quase 10% da População Economicamente Ativa (PEA) fora do mercado de trabalho. Na Espanha, em apenas três anos, de 2007 a 2010, a taxa de desemprego saltou de 8% para 20% — mais de 4 milhões de pessoas dependem de auxílio do governo. “No Brasil, diferentemente, estamos caminhando para o pleno emprego e há escassez de mão de obra qualificada em vários setores da economia”, ressalta.
A inversão é tamanha que, agora, bolivianos, colombianos, peruanos, paraguaios e argentinos vêm trocando o sonho de fazerem a vida nos EUA e na Europa pelo Brasil. Em vez de Miami, os olhos estão voltados para São Paulo e Rio de Janeiro. Em vez de Madri, Brasília e Manaus. Não à toa, o número de autorizações concedidas para profissionais estrangeiros quase dobrou de 2006 para cá. Naquele ano, foram 25.350 registros. Em 2010, as estimativas apontam para 46 mil — os números fechados até setembro chegaram a 39.057.
Nível elevado
O perfil desses trabalhadores impressiona. Quase 60% deles têm curso superior completo. Outros 38%, ensino médio ou técnico profissionalizante. A proporção dos que não concluíram o ensino médio não chega a 1%. Esses números revelam a nova estratégia do Brasil na sua política de imigração. Estimativas sugerem que, nos séculos 19 e 20, quase 5 milhões de japoneses, árabes e italianos, entre outras nacionalidades, ingressaram no país. A maioria era de pessoas de baixa escolaridade e renda que vieram substituir a mão de obra escrava nas fazendas.
Agora, diante dos desafios de explorar a camada de petróleo no pré-sal — o terceiro maior campo de óleo e gás do mundo — e de tocar grandes obras de infraestrutura e eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, o Brasil está de olho nos melhores e mais capacitados cérebros do mundo. Por isso, a tendência é de que a entrada de profissionais estrangeiros aumente ao longo dos anos. “Desde 2004, há um crescimento forte no país, o que abriu muitas oportunidades de trabalho. Além disso, as novas políticas de investimentos públicos, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), explicitaram a escassez de pessoas qualificadas no Brasil”, explica Janine Berg, especialista em emprego da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Mesmo em setores em que a qualificação não é prioridade máxima, os estrangeiros têm conquistado espaços. É o caso, por exemplo, do segmento de bares e restaurantes. A diferença não está na graduação, mas na fluência em línguas como o inglês e o espanhol. A argentina Sandra Flores, 38 anos, que o diga. Ela conseguiu reconstruir a vida no Brasil. Nos anos 1990, passou um bom período no país trabalhando como artista de circo, contratada por uma empresa com sede na Argentina. Depois de voltar para o país de origem, teve, em 2001, seu primeiro filho, Stefano. Mas se viu obrigada a retornar ao Brasil por conta da crise econômica que assolou a Argentina.
“Eu não queria que meu filho passasse por uma situação tão difícil e também não gostaria de prosseguir na vida no circo. Vi, no Brasil, a chance de me recolocar no mercado. Foi um recomeço”, lembra Sandra. Durante mais de cinco anos, porém, ela ficou na ilegalidade, e se virou bordando e fazendo traduções, o que lhe rendia R$ 500 por mês. Apenas em 2005, por conta de um acordo dentro do Mercado Comum do Sul (Mercosul), ela conseguiu se regularizar e, hoje, recebe R$ 1,5 mil como garçonete em um restaurante francês.
Mas o chefe de Sandra, o empresário Sérgio Quintiliano, quer mais. De olho em um público que só tende a aumentar diante da entrada definitiva do Brasil no clube dos protagonistas mundiais — o país e outras seis economias emergentes (China, Índia, Rússia, México, Turquia e Indonésia) terão, até 2020, um Produto Interno Bruto (PIB) maior do que as atuais potências juntas (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá) —, ele reforçará o quadro de pessoal com trabalhadores de fora. “Estamos diante de um cenário desafiador. O Brasil está atraindo cada vez mais turistas de todo o mundo e ainda teremos a Copa de 2014 e as Olimpíadas. Infelizmente, a formação básica em línguas no Brasil é deficiente e os trabalhadores estrangeiros suprem essa lacuna”, justifica.
Nada de espanto
Para o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Paulo Safady Simão, a importação de mão de obra estrangeira pelos países emergentes, em especial o Brasil, que não têm uma população tão expressiva como a China e a Índia, é um fenômeno irreversível. Ele conta que o setor está, hoje, à beira de um apagão, porque, ao longo de anos, não investiu como devia na educação dos futuros trabalhadores. “Falta de tudo, pedreiros, serventes, pintores e, principalmente, engenheiros”, afirma.
Pelos levantamentos da Confederação Nacional de Engenharia e Arquitetura (Confea), há 712,4 mil engenheiros no Brasil. Anualmente, formam-se 32 mil profissionais, em todas as modalidades, quando o necessário seriam pelo menos 50 mil. Assim, com o ritmo de crescimento do país se mantendo próximo de 5% ao ano ao longo das próximas décadas — projeções da PricewaterhouseCoopers indicam que, em 2050, o Brasil será a quarta potência econômica do planeta —, a importação de engenheiros virará rotina. “Estamos avançando em grande velocidade. Não podemos permitir que gargalos como a falta de pessoas qualificadas nos prejudiquem”, destaca Simão. Ele negocia, com a Embaixada de Portugal, trazer engenheiros portugueses para o Brasil.
Selado esse quadro, que ninguém se espante com o aumento expressivo das transferências de renda dos trabalhadores estrangeiros para seus países — boa parcela dos recursos, para sustentar as famílias que ficaram por lá. Dados do Banco Central mostram que, enquanto as remessas para o país de brasileiros que vivem no exterior, especialmente EUA e Japão, estão com tendência de queda (foram US$ 2,9 bilhões em 2006 e cerca de US$ 2,2 bilhões em 2010), as dos estrangeiros que vivem aqui avançam a um ritmo espetacular, totalizando, entre janeiro e novembro de 2010, US$ 759 milhões, mais do que todo o montante de 2009, de US$ 680 milhões.
“Esses são movimentos típicos de mudanças de países que saíram da segunda divisão para a elite mundial, com taxas robustas de crescimento econômico ”, diz o economista Carlos Eduardo de Freitas, ex-diretor da Área Externa do BC. Mais do que isso, os números mostram que o Brasil vem conseguindo se livrar da praga do desemprego justamente quando está entrando em seu auge produtivo — a população entre 15 e 64 anos será maioria nos próximos 20 anos.
US$ 325 bi no mundo
A nova ordem mundial, que vem impondo uma mudança no eixo dos investimentos globais, também modificou, de forma determinante, o endereço dos países que mais abrem postos de trabalho no planeta. Consequência natural desse movimento, uma outra agitação começa a ser percebida: a alteração no fluxo das remessas de dinheiro enviadas por trabalhadores a seus países de origem. Antes da crise internacional, que explodiu em 2008, ainda era clara a predominância das transferências a partir das nações ricas, como Estados Unidos e Japão, tradicionais acolhedores de mão de obra. Mas o reposicionamento dos emergentes, agora polos empregadores, está transformando essa realidade.
Com o desemprego atingindo taxas recordes em países que receberam milhares de imigrantes nos últimos 10 anos, os recursos remetidos desses lugares encolheram a partir da recessão mundial de 2008 e 2009 — os dois piores anos da década passada. Além dos estrangeiros empregados nos EUA, os que optaram pela Europa como lar também passaram a mandar menos dinheiro para casa. Desde então, tanto os norte-americanos quanto os europeus amargam taxas de desemprego próximas a 10%. Na direção oposta, imigrantes que escolheram nações como China, Índia e Brasil vêm elevando as remessas aos familiares.
Dados do Banco Mundial mostram que os novos paraísos do emprego e da renda ajudaram na recuperação do fluxo mundial de remessas oriundas do trabalho em cerca de 6% em 2010, para algo perto dos US$ 325 bilhões. Não é pouco. No ano passado, os recursos das famílias que cruzaram fronteiras foram três vezes maiores que a ajuda dos países ricos às nações pobres duas décadas atrás. A despeito dos volumes ainda pequenos das transferências, quando comparadas às remessas das nações do Velho Continente ou dos Estados Unidos, a economia brasileira vem ganhando cada vez mais relevância.
Iuans e reais
Em média, bolivianos, paraguaios, argentinos e equatorianos, entre outros estrangeiros radicados no Brasil, já mandam US$ 1 bilhão por ano aos seus países de origem. A recessão mundial não afetou esse movimento. Em 2010, foram remetidos US$ 760 milhões até novembro. Vultosos, os valores despachados dos países do Primeiro Mundo continuaram elevados no ano passado: estima-se que R$ 48 bilhões deixaram os EUA, US$ 20 bilhões foram enviados da Suíça e US$ 15 bilhões saíram da Alemanha. Mas a desvalorização do dólar e do euro, ao lado do forte desemprego, faz com que esses valores percam força diante das somas produzidas em reais, iuans ou rúpias.
Com a economia em franca expansão, o emprego beirando à plenitude e a moeda valorizando-se fortemente, o Brasil passou a ser visto pelo Banco Mundial como uma origem importante de remessas ao exterior. A exemplo de seus congêneres, o país está passando de financiado a financiador. Estatísticas do Banco Mundial mostram que o dinheiro despachado do Brasil mais do que dobrou no intervalo de cinco anos. A maior parte foi enviada por latino-americanos aos familiares na vizinhança, com destaque para as transferências dos 200 mil bolivianos radicados na capital paulista.
Mas, por outro lado, o país e toda a América Latina sentiram o peso da crise nas economias ricas. O envio de recursos dos brasileiros ou dos latinos que vivem em outras nações vem caindo substancialmente, especialmente quando a origem das remessas são os EUA. Só em 2009, elas encolheram 12% e praticamente não houve retomada em 2010 — a recuperação foi de apenas 2%. Com o desemprego espanhol nas alturas — estima-se que 40% dos estrangeiros estejam sem trabalho naquele país—, a renda das famílias e as contas externas de economias como as de Equador, da Colômbia e da Bolívia foram duramente atingidas.
As remessas de brasileiros empregados lá fora praticamente estão estagnadas. Elas devem fechar 2010 próximo a 2009, quando foram injetados US$ 2,2 bilhões na economia verde-amarela. Em comparação a 2008, o valor ficará menor em quase US$ 900 milhões, diz o Banco Mundial. O Brasil tende a fechar a década como 24º do ranking dos países que mais recebem dinheiro do exterior. A Índia ostentará a primeira posição. Vai botar as mãos em US$ 55 bilhões do fluxo global de remessas de estrangeiros e as famílias chinesas virão na sequência, com US$ 51 bilhões.
Brasileiros fazem o caminho de volta
O apetite dos trabalhadores estrangeiros pelo Brasil está respaldado em pesquisa da empresa de recrutamento e administração de recursos humanos Manpower. Ao indagar 64 mil empresas de 39 países, a consultoria registrou que a economia brasileira desponta como a 4ª mais promissora em termos de expectativa de emprego para 2011. Não sem motivo, conforme o presidente do Conselho Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho, Paulo Sérgio de Almeida.
“O ritmo acelerado de investimentos públicos e privados, especialmente em áreas como petróleo, gás e energia, atrai empresas e, com elas, trabalhadores para as várias funções, inclusive executivas, como gerentes, supervisores e diretores”, diz Almeida. Mas não é só. “Nosso parque industrial está em constante modernização. Vamos precisar de profissionais para supervisionar a implantação de plataformas produtivas, a maioria usando equipamentos e tecnologias estrangeiras”, acrescenta.
Diante das perspectivas positivas para o Brasil, não são apenas os estrangeiros que migram para o país. Brasileiros que, há anos, estavam fora, muitos em postos estratégicos no mercado financeiro dos Estados Unidos, fizeram o caminho de volta. Desanimados com a fragilidade de Wall Street, que quase sucumbiu depois do estouro da bolha imobiliária norte-americana em 2008, eles vêm embarcando na onda de oportunidades de negócios no país. Vários deles, executivos de ponta, têm constituído empresas financeiras, denominadas butiques, para assessorar o capital externo que está aportando na economia local. “O Brasil vive um momento ímpar, de prosperidade. Ninguém quer perder esse bonde”, afirma o economista-chefe do Banco Schahin, Sílvio Campos Neto.
A mesma avaliação é feita por José Márcio Carmargo, especialista em emprego e economista-chefe da Opus Investimentos. “Os movimentos de migração para o país refletem a realidade econômica mundial do pós-crise”, ressalta. Para ele, dificilmente esse quadro mudará tão cedo, pois as perspectivas de crescimento para os países industrializados são ruins e o desemprego elevado continuará atormentando essas nações por um bom tempo. “A tendência das economias ricas não é de atrair mão de obra, mas de expulsar trabalhadores, especialmente os estrangeiros”, complementa.
Troca de experiência
Quem está arrumando as malas em direção ao Brasil é o panamenho Edgar Escobar, 44 anos. Engenheiro eletricista, especialista em administração de negócios e professor universitário, ele está casado há um ano e meio com a brasileira Monaliza Maia, 43. Os dois decidiram vir para o país por conta de uma proposta de trabalho que ela recebeu. “Eu já havia morado aqui nos anos de 1990, quando a situação econômica era muito ruim. Agora, percebemos que o Brasil está se destacando, com boas perspectivas para o mercado de trabalho. Vamos fazer essa aposta”, diz Escobar.
Ele sabe do que fala. Pelos cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego no Brasil está em 5,7%, a menor da história. Há regiões em que o índice gira entre 3% e 4%, considerado pleno emprego pela literatura econômica. “O quadro no mercado de trabalho é tão favorável que as empresas estão com dificuldade para encontrar pessoas qualificadas. Portanto, o país precisa de uma política agressiva de imigração para melhorar até mesmo a produtividade do país”, diz Camargo, da Opus Investimentos.
No entender de Janine Berg, especialista em emprego da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a flexibilização dos processos para a entrada de trabalhadores estrangeiros no Brasil é mais do que urgente. “Trata-se de mão de obra fundamental para superar os gargalos que podem comprometer o crescimento sustentado do país. Além disso, durante o tempo em que estão aqui, os estrangeiros capacitam os brasileiros que trabalham com eles”, explica. (CB e VC)
Oriente à vista
Embora se diga que o Brasil virou a Meca dos imigrantes, o país continua exportando trabalhadores. Depois de enfrentar, no fim de 2008 e durante todo o ano de 2009, a crise financeira internacional, os dekasseguis, brasileiros descendentes de japoneses que haviam retornado para o país, estão voltando ao Japão, que enfrenta um lento, mas doloroso processo de encolhimento populacional.
Desalento nos EUA
» Até há pouco tempo desacostumados a taxas de desemprego elevadíssimas, próximas aos 10%, os norte-americanos passaram a se deparar com uma nova realidade: o desalento, fenômeno que explica o desânimo dos desocupados na busca por um lugar ao sol. Por essa razão, os Estados Unidos sequer puderam comemorar a ligeira redução — de 9,8% para 9,4% — do total da população sem emprego no fim de 2010. O movimento teve um dado desconcertante: a força de trabalho do país diminuiu em 260 mil pessoas em 2010. Em outras palavras, os cidadãos já não acreditam que haverá vagas para todos nos EUA." |