Maximiliano Nagl Garcez
Tiago Gubert Cury
Diego Felipe Bochnie Silva
Advogados - Advocacia Garcez
Há várias condições necessárias para que uma empresa desconte do trabalhador valores despendidos com o reparo de danos em equipamentos de transporte da empresa ou de terceiros, decorrentes de acidentes de trânsito.
Caso uma empresa opte por instituir Comissão visando analisar os acidentes, é necessário respeitar os princípios do contraditório e da ampla defesa. As punições não podem se mostrar desproporcionais, e nem podem ser fixadas segundo critérios rígidos, matemáticos, que venham a desconsiderar as circunstâncias do caso concreto.
Não se olvida que, em muitas situações, a responsabilização do empregado por acidente ocorrido com equipamento de transporte da empresa é legítima. Contudo, tal responsabilização precisa ser atestada de forma justa e em conformidade com a legislação pátria.
CONDUTAS TIPIFICADAS EM NORMA INTERNA DA EMPRESA DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA – INADMISSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA DOS EMPREGADOS – VIOLAÇÃO AO ART. 37, §6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Quaisquer pessoas jurídica de direito privado, integrante da Administração Indireta e que preste, serviços públicos, submete-se, ainda que parcialmente, à principiologia estabelecida pelo caput do art. 37 da Constituição Federal. Já o §6º do mesmo artigo aplica-se integralmente a tais empresas.
Desta forma, extrai-se do texto constitucional que as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos respondem objetivamente pelos danos causados por seus agentes. É assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Ou seja, enquanto a responsabilidade da pessoa jurídica perante terceiros é objetiva, a responsabilidade do agente perante a pessoa jurídica prestadora de serviços públicos é subjetiva. Segundo a Constituição, portanto, o agente apenas responderá quando houver agido com dolo ou culpa.
Ademais, para demonstração de existência de dolo ou culpa, não basta a juntada de boletim de ocorrência ou exame do relato do empregado. É necessária a produção de prova específica. Veja-se posicionamento dos Tribunais acerca da necessidade de produção de prova específica, sub judice, para aferição de dolo ou culpa:
TRT-PR-31-03-2006 JUSTA CAUSA. BOLETIM DE OCORRÊNCIA DE ACIDENTE. PROVA INSUFICIENTE EM RELAÇÃO À CULPA DO EMPREGADO. A juntada de boletim de ocorrência não basta para demonstrar culpa ou dolo do empregado em acidente de trânsito que respalda a justa causa para a despedida. O boletim de ocorrência é mero indício, sendo indispensável que o seu conteúdo seja corroborado por prova específica produzida nos próprios autos da ação trabalhista. (TRT-PR-02763-2003-019-09-00-1-ACO-09383-2006 - Relator: DIRCEU PINTO JUNIOR - Publicado no DJPR em 31-03-2006)
DA TRANSFERÊNCIA DOS RISCOS E DOS ÔNUS DA ATIVIDADE PARA O EMPREGADO - ILEGALIDADE
O chamado Princípio da Assunção dos Riscos ou Princípio da Alteridade é velho conhecido dos estudiosos do Direito do Trabalho. Segundo este princípio, impõe-se ao empregador os ônus decorrentes de sua atividade empresarial ou até mesmo do contrato de trabalho celebrado. Neste sentido, veja-se a lição trazida pelo Ministro do TST Maurício Godinho Delgado:
“A regra da assunção dos riscos pelo empregador leva a que não se autorize a distribuição de prejuízos ou perdas aos empregados, ainda que verificados reais prejuízos e perdas no âmbito do empreendimento dirigido pelo respectivo empregador. A mesma regra conduz à vedação de descontos nos salários do empregado, excetuadas estritas hipóteses legais e normativas (art. 462, CLT), o que confere, assim, certa intangibilidade à contraprestação percebida pelo trabalhador (art. 7º, IV, CF/88; art. 468, CLT).” (Delgado, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 8ª ed. São Paulo: LTr, 2009, p. 376)
A própria CLT, em seu art. 2º, prevê que cabe ao empregador arcar com os riscos da atividade empresarial. Transferir ao empregado os ônus decorrentes de acidentes ocorridos sem qualquer participação dolosa ou culposa é transferir-lhe parte do risco decorrente do exercício da atividade e, por mais este motivo, tal prática não pode ser tolerada ante o ordenamento jurídico vigente.
A jurisprudência já se consolidou no sentido de que o risco do empreendimento não pode ser transferido ao trabalhador. Assim, o desconto, seja referente a danos causados por colisão, seja referente a multas de trânsito, não é lícito quando ausente prova cabal e inequívoca da culpa ou dolo do empregado.
21069192 - DESCONTOS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. O desconto no salário do empregado em virtude de dano causado só é possível quando esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dano provocado pelo empregado que agiu culposamente no exercício de suas funções (CLT, artigo 462, §1º). A realidade demonstra que o empregado diante do poder diretivo do empregador costuma concordar com descontos, sem que se tenha a comprovação exata da sua responsabilidade. O risco de acidentes com veículos faz parte de qualquer empreendimento como o da reclamada, o qual não pode ser transferido ao trabalhador. Não havendo outros elementos nos autos a comprovar de forma cabal e inequívoca a culpa do empregado, impõe-se a manutenção do decisório de primeiro grau. (TRT 02ª R.; RO 00385; Ac. 20060848558; Décima Segunda Turma; Rel. Juiz Delvio Buffulin; Julg. 19/10/2006; DOESP 10/11/2006) CLT, art. 462
VIOLAÇÃO AO ART. 462 DA CLT
Além de todo o exposto, acrescente-se que somente em casos excepcionais admitem-se descontos no salário do empregado, conforme dispõe o art. 462 da CLT:
Art. 462 - Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.
§ 1º - Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde de que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.
Qualquer inversão do ônus da prova em desfavor do empregado é notoriamente ilegal (ainda que carreada em norma unilateralmente criada pela empresa), pois contraria a legislação trabalhista e os princípios protetivos do trabalho.
A jurisprudência é pacífica no sentido de que “a prova da existência do dano, da culpa ou da intenção maléfica do obreiro é ônus que recai sobre o empregador, à exegese dos art. 818 da CLT e 333, II, do CPC.”. Veja-se:
40013791 - JUNTADA DE CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO CUJA VIGÊNCIA ENCERROU-SE EM DATA ANTERIOR AO INÍCIO DO CONTRATO DE EMPREGO. AUSÊNCIA DE INSTRUMENTO NEGOCIAL COLETIVO VIGENTE À ÉPOCA DOS FATOS. DIREITO A SER PROVADO EM JUÍZO. PRECLUSÃO. In casu, a única cct acostada aos autos refere-se a período anterior ao do contrato de trabalho celebrado pelas partes, razão pela qual não pode ser utilizada como fonte material de suposto direito do autor. Ademais disso, embora a cct se consubstancie em direito a ser provado em juízo, o que autorizaria a conversão do feito em diligência para fins de busca dessa prova (CPC, art. 337), fato é que essa possibilidade deixou de existir com o encerramento da fase de instrução processual, razão pela qual não se admite perquirir em página 26 de 112 busca desse direito, a ser provado em juízo, em segunda instância. Jornadade trabalho. Empresa com mais de dez empregados. Comprovação parcial. Inteligência do § 2º do art. 74 da CLT e da Súmula nº 338, I, do TST. Sempre que a empresa possuir mais de dez empregados, a prova da jornada de trabalho destes deverá ser documental. A não-apresentação injustificada, ainda que parcial, dos controles de freqüência gera a presunção relativa de veracidade dos horários apontados na peça exordial, que podem ser elididos por prova em contrário. Desconto. Princípio da intangibilidade salarial. Falta de previsão contratual. Inexistência de prova de culpa ou dolo do trabalhador. Prática baseada em costume. Impossibilidade. É imprescindível a existência de previsão expressa no contrato de emprego para a realização de descontos salariais decorrentes de culpa do empregado (art. 462, § 1º da CLT). Ademais, a prática adotada pelo obreiro, revestida de cuidado, se configura critério de conduta geral adotada por todos os trabalhadores integrados no mesmo tipo de contexto, o que se amolda com perfeição ao conceito de 'costume', com caráter de norma jurídica. Imperioso destacar ainda que a prova da existência do dano, da culpa ou da intenção maléfica do obreiro é ônus que recai sobre o empregador, à exegese dos art. 818 da CLT e 333, II, do CPC. Com base nesses parâmetros legais, depreende-se que o desconto salarial realizado ao término do vínculo empregatício não se revestiu de legalidade. (TRT 23ª R.; RO 00191.2008.036.23.00-0; Rel. Des. Edson Bueno; DJMT 04/09/2008; Pág. 26)
TRT-PR-13-05-2008 EMPREGADO MOTORISTA - DANOS MATERIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRÂNSITO - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE CULPA - DESCONTOS INDEVIDOS - Boletim de Registro de Ocorrência de Acidente de Trânsito emitido pela Secretaria de Estado de Segurança Pública - Polícia Militar - DETRAN, não comprova a culpabilidade de nenhuma das partes envolvidas no acidente de trânsito. Apenas descreve situação do acidente e danos causados. Não comprovada pela ré a culpa do autor, deve ser respeitada a cláusula coletiva que permite dedução de valores pelos preJuizos causados pelos empregados apenas se comprovada a culpa ou o dolo destes. Mantida a sentença quanto à devolução dos valores descontados do autor a tal título. (TRT-PR-03338-2007-664-09-00-7-ACO-15582-2008 - 4A. TURMA - Relator: SÉRGIO MURILO RODRIGUES LEMOS - Publicado no DJPR em 13-05-2008)
VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA
Por fim, qualquer procedimento para apuração da responsabilização de trabalhadores por acidentes com equipamentos de transporte deve respeitar os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Note-se que o empregado pode ser responsabilizado somente nos casos de dolo ou culpa, cuja aferição implica complexa apuração probatória.
A própria Constituição Federal, em seu art. 5º, LV, reconhece aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o direito ao contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Por fim, a ausência de motivação nas decisões internas que concluem pela responsabilidade do empregado pelos danos causados impede o exercício da ampla defesa e do contraditório, pois não permitem ao sancionado conhecer os fundamentos que conduziram à sua punição.
A ausência do contraditório, da produção de provas, da oportunidade à manifestação do trabalhador e de qualquer fundamentação nos atos decisórias afrontam à garantia fundamental do contraditório, autêntico direito fundamental assegurado pelo artigo 5º da Constituição. O Poder Judiciário já teve oportunidade de apreciar a necessidade de observância dos princípios do contraditório e ampla defesa como requisito para punir o empregado com fulcro em suposta “falta” cometida. Veja-se, por exemplo, o julgado abaixo:
35018313 - ESTORNOS DE COMISSÕES, RETENÇÕES POR CHEQUES DEVOLVIDOS E DESCONTOS POR MULTA DE TRÂNSITO. AUSÊNCIA DE CULPA DO OBREIRO. Incumbir ao trabalhador a tarefa de arcar com o inadimplemento de clientes é transferir-lhe os riscos da atividade econômica, prática vedada no ramo justrabalhista, por força da teoria da alteridade (art. 2º da CLT). A eficácia horizontal dos direitos fundamentais determina que tais garantias aplicam-se também às relações entre particulares. De se concluir que, antes de fazer os descontos, não poderia a Ré descuidar de um procedimento de apuração, que conferisse ao Reclamante possibilidade de manifestação, a par dos postulados da presunção de inocência, do devido processo legal e do contraditório (art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal). Infringência, na espécie, do princípio da intangibilidade salarial (art. 462, caput, da CLT). Recurso não provido. (TRT 18ª R.; RO 02291-2008-008-18-00-9; Primeira Turma; Rel. Des. Júlio César Cardoso de Brito; Julg. 25/09/2009; DJEGO 08/10/2009) CLT, art. 2 CF, art. 5 CLT, art. 462
Ainda que não contemple descontos por danos causados em acidente de trânsito, o julgado acima revela raciocínio totalmente aplicável às questões ora analisadas.
CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, apresentamos as seguintes conclusões:
- qualquer procedimento unilateralmente estabelecido por empresa, visando verificar se houve culpa de trabalhador em acidente de trânsito envolvendo veículo do empregador, não pode transferir aos seus empregados parte dos ônus inerentes ao exercício de atividade;
- a caracterização de falta apta a ensejar a responsabilização do empregado e aplicação de punições deve levar em conta o grau de culpa ou dolo;
- o ônus de demonstrar qualquer circunstância que o isente de responsabilidade, inclusive ausência de dolo ou culpa, não pode ser transferido ao empregado;
- qualquer decisão tomada pelo empregador quanto à responsabilidade do empregado pelo acidente deve ser acompanhada da devida fundamentação, a fim de viabilizar sua impugnação.
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