quinta-feira, 3 de abril de 2014

Funcionários revelam como encontraram vala de Perus que recebia mortos pela ditadura (Fonte: Jornal Floripa)

"Se hoje Perus é considerado periferia de São Paulo, imagine há 50 anos? Foi no bairro de ares interioranos da zona norte, que os militares encontraram o local ideal para esconder presos políticos mortos durante a ditadura militar. Construído em 1971, o Cemitério Dom Bosco foi depósito de 1049 ossadas. Apesar de sempre desconfiarem, o ex-administrador do cemitério Antônio Eustáquio, 68, e o ex-coveiro Lucas Oliveira*, 62, não sabiam ao certo o que se passava no local, muito menos que faziam parte da etapa final de todo um processo de repressão instalado pelo regime.
Os amigos Eustáquio, mais conhecido como Toninho, e Oliveira se conheceram quando o primeiro foi trabalhar no cemitério. Antes, Toninho já havia trabalhado no da Consolação e no da Vila Mariana. “A primeira coisa que eu fazia quando chegava em um cemitério era levantar o arquivo, os registros. Como aqui [Perus] tinha ossuário, precisava exumar e reenterrar os enterrados e tinha que constar no livro a data dos dois procedimentos. Na área da vala clandestina só tinha a data de exumação e mais nada. Aí comecei a desconfiar. Quando questionava os funcionários sobre isso, eles disfarçavam”, lembra.
A vala à qual o ex-administrador se refere foi criada em 1976 após uma tentativa frustrada de se construir um crematório no local. Sem registro nos documentos do cemitério, ela foi a solução encontrada para colocar as diversas ossadas que estavam espalhadas pelas salas de velório.
Enquanto Toninho administrava, Oliveira era quem sepultava os cadáveres. Nascido no interior de São Paulo, mudou-se para Perus aos nove anos e já nessa idade trabalhava como vendedor em um armazém. Quando o Dom Bosco foi inaugurado, ele não pensou duas vezes e logo foi trabalhar lá. Das 7h às 18h, cavava defunto, como ele dizia. O coveiro conta que os sepultamentos de indigentes chegavam a ser maiores que os comuns, somando 25 em dois dias.
“Os corpos vinham em um furgão preto da polícia civil. A maioria estava sem roupa, em um caixão sem forro, sem luxo, sem nada e muitos tinham marca de bala. Falavam que no meio desses ossos poderia ter preso político. Na década de 70, famílias começam a ir até o cemitério para perguntar sobre os corpos. Eu explicava que vinham só com um número e aí ficava difícil de localizar”, lembra o coveiro.
Uma das famílias que chegaram a ir até o Dom Bosco foi a a da professora Sônia Maria, que era militante da ALN (Ação Libertadora Nacional). Ela foi presa e torturada no DOI-Codi do Rio de Janeiro e de São Paulo. Instigado com o caso, Toninho resolveu investigar o caso dela e dos outros corpos sem o registro correto. Perguntou para vários companheiros de trabalho, mas ninguém falava nada sobre o assunto. Um dia, fora da cemitério, um colega de trabalho acabou falando da vala. Decidido a encontrar os corpos, Toninho pegou uma sonda e desceu três metros na área indicada pelo colega e confirmou as suas suspeitas.
Em 1990, após o fim da ditadura militar, a vala foi aberta. Na época, foi firmado um convênio com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que faria o trabalho de identificação dos corpos. As ossada ficaram na universidade durante 20 anos e depois foram para o cemitério do Araçá, em São Paulo. Agora, esse trabalho deverá ser feito por um centro de antropologia forense, fruto de uma parceria entre a prefeitura de São Paulo, a Secretaria de Direitos Humanos do governo federal, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Universidade Federal de São Paulo. Procurada, a SDH não respondeu sobre o número de presos políticos identificados na vala.
MEMÓRIA
Falar da ditadura militar e dos presos políticos enterrados no cemitério ainda é um tabu em Perus, mesmo passados 50 anos do início do regime e pouco mais de 40 da construção do Dom Bosco. Segundo Oliveira, peruenses como ele acreditavam na época que a polícia era sinônimo de respeito e isso permanece até hoje na mentalidade dos moradores. Para Toninho, é uma pena que não se fale muito sobre o assunto no bairro. “A história nunca morre, desde que seja lembrada”, ressalta.
*O entrevistado preferiu não se identificar."

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