Correio Braziliense - 09/02/2012
Apurações da Comissão da Verdade poderão levar a processos contra agentes do Estado que cometeram abusos na ditadura
O governo modificou o tom cauteloso do discurso adotado em meados de 2011, quando ainda tentava aprovar a lei que cria a Comissão da Verdade. Naquele momento, prevalecia a tese de que o colegiado teria efeitos tão etéreos quanto a "efetivação do direito à memória", o que gerou resistências de setores ligados aos direitos humanos e de familiares de vítimas. Agora, passados três meses desde a sanção presidencial que criou o colegiado, começa a ser desenhada a perspectiva de punição real para aqueles que tenham cometido crimes durante o período da ditadura militar.
A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, disse ao Correio que as informações reunidas pela comissão poderão dar origem a processos de condenações semelhantes aos que ocorreram em países vizinhos. Ela observa que, na América Latina, a iniciativa de revisão dos atos governamentais praticados durante períodos autoritários não tiveram início com um caráter punitivo. No entanto, o clamor social fez com que resultassem em amplos processos de condenação, como o que ainda ocorre na Argentina, onde mais de 200 agentes repressores já foram punidos. "Reconhecemos legítimo quando a sociedade propõe e luta no sentido da responsabilização criminal", diz a ministra.
Maria do Rosário afirma que o acesso aos documentos e testemunhos fundamentais para a construção da narrativa do período serão assegurados, se preciso, por vias policiais. "Qualquer arquivo será aberto para a comissão, seja privado ou público", pontua.
Para Gilda Carvalho, procuradora federal dos Diretos do Cidadão, o Ministério Público deve encaminhar denúncias a partir de informações levantadas pela comissão que contenham fatos criminosos. Ela sustenta, inclusive, que a Lei de Anistia não será empecilho para futuras condenações aos repressores. "Nós somos signatários de uma convenção internacional sobre direitos humanos que, hierarquicamente, está acima dessa legislação ordinária. Os tribunais brasileiros não podem dar a última interpretação sobre tratados firmados pelo país em âmbito internacional."
As discussões sobre os sete nomes que irão compor a comissão são realizadas a portas fechadas. Interlocutores do Planalto afirmam que a composição deverá refletir a Esplanada que Dilma Rousseff vem tentando montar, dividida entre perfis técnicos e políticos. Militares, no entanto, não deverão compor o colegiado, por decisão da presidente. Há ainda uma discussão com juristas sobre impedimentos à participação de membros do Ministério Público no grupo, já que o órgão será o responsável pelos encaminhamentos de denúncias criminais.
Três perguntas para - Maria do Rosário
Ministra da Secretaria de Direitos Humanos
Quais serão os resultados práticos da Comissão da Verdade?
A comissão em si não terá papel jurisdicional ou punitivo. Mas as informações que ela vai buscar e organizar, inclusive sobre as circunstâncias de mortes, de tortura e de responsáveis, efetivamente poderão ser utilizadas para movimentar procedimentos de natureza jurídica pelo Ministério Público. A comissão vai apresentar informações e a sociedade vai fazer com elas o que acreditar ser melhor.
A confirmação da Lei de Anistia pelo STF pode ser um empecilho para isso?
Não. Esse é um debate que vai ter que ser travado entre o MP, a sociedade e o Poder Judiciário. Para fazermos avançar a Comissão da Verdade, tivemos que fazer uma opção política. O Poder Executivo não está debatendo a Lei de Anistia. Se tivéssemos centrado a construção da comissão na responsabilização criminal, não teríamos avançado. Mas essa opção não deixa de reconhecer que a sociedade tem sua própria agenda de responsabilização criminal, que é legítima.
Então o Brasil pode chegar a um processo de condenações, como em países vizinhos?
Perfeitamente. Nenhum país entre os quase 40 que tiveram uma comissão da verdade teve em sua primeira agenda a responsabilidade criminal. Mesmo as experiências mais fortes de responsabilização criminal, como a da Argentina, não começaram pela parte penal. Começaram pela busca de informações. E, depois, a sociedade argentina, indignada com os fatos, reagiu àquilo, exigindo mais."
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