terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Íntegra da Carta Sociolaboral Latino-Americana, elaborada pela ALAL em 2009

Ante sua relevância e atualidade, divulgo em nosso blog a íntegra da Carta Sociolaboral Latino-Americana, elaborada em 2009 pela ALAL - Associação Latino-Americana de Advogados Laboralistas, da qual tenho orgulho de participar.

Maximiliano Nagl Garcez
Advocacia Garcez


DECLARAÇÃO DO MÉXICO
CARTA SOCIOLABORAL LATINOAMERICANA
RUMO A UMA SOCIEDADE PLANETÁRIA
COM INCLUSÃO SOCIAL
Os advogados trabalhistas latino-americanos, representantes das associações e agrupações aderidas à ASSOCIAÇÃO LATINO AMERICANA DE ADVOGADOS LABORALISTAS (ALAL), reunidos na Assembléia Geral Ordinária celebrada na cidade do México a 23 de outubro de 2009, aprovam por unanimidade a seguinte declaração:
O sistema capitalista está passando por uma de suas piores crises, já que os abalos da debacle financeira foram transferidos ao resto da economia mundial. Uma de suas piores conseqüências é o flagelo do desemprego, que rompe vários recordes em muitos países. A própria Organização Internacional do Trabalho (O.I.T.) reconheceu que a crise arrasou com milhões de postos de trabalho. Durante o corrente ano 61 milhões de pessoas foram empurradas para a desocupação, e há no mundo 241 milhões de desempregados, o que representa a maior cifra da história. Nos Estados Unidos, por exemplo, o desemprego chegou quase a dez por cento, a cifra mais alta em várias décadas.
Em sua resolução “Para se recuperar da crise: um Pacto Mundial para o Emprego”, a O.I.T. diz que a crise econômica mundial “colocou o mundo frente a uma perspectiva prolongada de aumento de desemprego e agudização da pobreza e da desigualdade”, ao passo que prognostica que, segundo ensinam experiências anteriores, a recuperação do emprego só será atingida “vários anos depois da recuperação econômica”. Este organismo internacional reconhece em seu documento que “O mundo deveria ser diferente depois da crise”, e melhor, nós acrescentamos.
Porém, seria um excesso de ingenuidade pensar que a crise da ordem social e econômica vigente na imensa maioria dos países do planeta se soluciona salvando os bancos da ruína, mediante a transferência de bilhões de dólares fornecidos, em definitiva, pelos contribuintes de cada país. Ainda mais ingênuo é pensar que a solução passa por uma maior regulação dos mercados financeiros mundiais, medida absolutamente necessária, mas também absolutamente insuficiente para atingir esse “mundo diferente” que propõe a OIT.
A verdadeira crise do sistema capitalista é o bilhão de seres humanos —ou mais ainda— que, segundo a FAO, padecem fome e desnutrição. A crise são esses quarenta por cento da população mundial que sobrevivem com menos de dois dólares por dia. São os treze por cento que não têm acesso a fontes de água limpa e os trinta e nove por cento que não têm água corrente nem banheiro em suas casas. O sistema está em crise pela tremenda desigualdade social que ele gerou, permitindo que vinte por cento dos habitantes do planeta fique com setenta e cinco por cento da riqueza, enquanto os quarenta por cento que ocupam a base da pirâmide social apenas possuem cinco por cento. Está em crise porque, por exemplo, mais da metade da população do mundo não tem acesso a um plano de saúde adequado.
Está em crise, finalmente, porque produz ricos cada vez mais ricos, à custa de pobres cada vez mais pobres, não como uma conseqüência indesejada, mas como resultado natural e lógico dos princípios e valores em que se sustenta. Esta tremenda desigualdade social se vê agravada pela despudorada ostentação de riqueza e poder que fazem as minorias privilegiadas. Setores sociais dedicados ao consumismo e ao usufruto e que vivem na abundância, que não têm o menor pudor de exibir seu afã exagerado de prazeres diante daqueles que sofrem miséria, indigência e exclusão social.
O capitalismo tem gerado uma sociedade materialista e carente de solidariedade, que não se comove frente às situações radicalmente injustas que ela mesma promove de maneira vergonhosa e desumana. Um individualismo abjeto que tudo ordena e subordina no próprio benefício, avassalando sem culpa os direitos dos outros. Uma classe social, particularmente na América Latina, que é minoritária, porém rica e poderosa, e que monopoliza a produção, o comércio e as finanças, aproveitando para seu próprio conforto e benefício todas as riquezas. Que desfruta de uma enorme influência em todos os poderes do Estado, influência que utiliza para manter seus privilégios e reprimir toda ameaça contra eles. Não são em poucos países latino americanos que uma porção de famílias são proprietárias de todos os bens e riquezas, empurrando a imensa maioria da população rumo à pobreza e à marginalização.
Fica claro, então, que o capitalismo, no que diz respeito à pretensão de toda ordem social de ser justa, fracassou. No entanto, a queda do muro de Berlim e o colapso do chamado “socialismo real” deixou um vazio que ainda não pôde ser ocupado: a ausência de um modelo social alternativo, alicerçado em princípios e valores diferentes. E é nisto que somos nós —os advogados e advogadas trabalhistas— quem está em dívida com nossos povos.
Sem sombra de dúvida, chegou o momento de pôr de lado as atitudes defensivas e de dizer o que não queremos, para passar à etapa de começar a construir essa nova ordem social, justa e solidária que nossos povos merecem. Para tanto, é preciso nos convencermos de que não há nada que autorize a pensar que o sistema social vigente atingiu uma hegemonia total e definitiva. A ideologia dominante tem querido nos convencer de que com o neoliberalismo a história tinha acabado, e de que qualquer questionamento a ela era absurdo e irracional. A crise atual do sistema capitalista prova a falsidade deste slogan.
Entretanto, é claro que entre o fracasso de um modelo social e sua substituição por outro há um longo caminho. Uma coisa es tomar consciência do esgotamento do modelo neoliberal, e outra muito diferente é oferecer uma alternativa crível e convocante. Para tanto, temos que estabelecer com clareza os princípios fundantes da nova ordem social que almejamos, elaborando uma agenda concreta e realista de políticas e iniciativas. Um projeto de cara ao século XXI, que coloque o trabalhador no centro do cenário, que acabe com o flagelo do desemprego, que proponha uma distribuição equitativa da renda, que aprofunde a democracia e que baixe à realidade a justiça social.
Visando esse objetivo, a ASSOCIAÇÃO LATINOAMERICANA DE ADVOGADOS LABORALISTAS, há um tempo que vem propondo a construção de um novo paradigma de relações de trabalho, que constitua um patamar inderrogável para todos os trabalhadores latinoamericanos. Uma resposta global a uma crise global do sistema capitalista. Uma Carta Sociolaboral para a América Latina, como passo prévio rumo a uma Constituição Social planetária.
Não há outra região do mundo na qual existam melhores condições para um efetivo processo de integração social, econômica e política. Porém, estamos descumprindo algo que é um imperativo que emana de nossas próprias raízes históricas e culturais, com o qual sonharam todos nossos heróis. Poderosos interesses econômicos internacionais, e a colonização cultural de nossas classes dirigentes, explicam este fenômeno.
No entanto, a América Latina tem um destino comum, como o demonstram os similares processos históricos vividos desde há seis séculos. A feroz ofensiva neoliberal contra os direitos dos trabalhadores, que todos nossos países sofreram na década de ´90, deveria ser uma prova mais do que suficiente da necessidade imperiosa de nos integrarmos para estabelecer uma estratégia de resistência a novas tentativas de dominação e exploração que certamente se aproximam, e para construir um modelo alternativo ao vigente.
Existe na América Latina um cenário político excepcional. Com suas diferentes realidades e contradições, Cuba, Nicarágua, Equador, Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, vivem processos políticos que com maior ou menor intensidade visam substituir o modelo social dos anos noventas.
A Carta Sociolaboral para a América Latina deverá estabelecer, em primeiro lugar, a livre circulação de pessoas, eliminando qualquer discriminação por razões de nacionalidade. E deve fixar um denominador comum no nível de proteção dos direitos dos trabalhadores, que agirá como um dique de contenção frente a novos ataques que contra eles tentará o neoliberalismo, acaso vestindo novas roupagens com as quais pretenda disfarçar suas misérias.
Nós propomos uma legislação laboral supranacional, que contenha normas plenamente operacionais e imediatamente aplicáveis, para não repetir a triste experiência de nossos povos, de direitos e garantias constitucionais que se enunciam clamorosamente e que, no entanto, não baixam jamais à realidade.
A Carta Sociolaboral Latinoamericana deverá consagrar o direito a um emprego digno como um direito humano fundamental. Um sistema de economia capitalista de acumulação privada oferece um único caminho àqueles que não são titulares dos meios de produção para ter acesso ao consumo de sobrevivência: o aluguel de sua força de trabalho para obter uma remuneração que posteriormente possa trocar por bens e serviços. Isto significa que, por um lado, o trabalhador se encontra cativo do sistema e, por outro lado, que este sistema só pode aspirar a um mínimo de legitimidade social se garantir a todos os trabalhadores um emprego com uma remuneração digna.
O ordenamento jurídico, que pretende ser um sistema de organização social justo e de convivência em paz, deverá, portanto, garantir aos trabalhadores um emprego estável que lhes possibilite ter um projeto vital, isto é, a possibilidade de construir um plano de vida que lhes permita pensar, a partir de um patamar firme, em um futuro sentido como esperança.
Desta premissa se depreendem vários direitos laborais que, repetimos, são direitos humanos fundamentais. Em primeiro lugar, o direito ao trabalho, que abrange o direito a não ser privado dele sem mediar justa causa. Em segundo lugar, a garantia de perceber a remuneração, da qual deriva a obrigação de todos aqueles que na cadeia produtiva se beneficiam com o trabalho alheio, de responder solidariamente perante a falta de pagamento. Isto sem prejuízo da obrigação dos Estados de criar fundos especiais para cobrir uma eventual insolvência patronal. Uma remuneração digna, de outro lado, não é só aquela que permite ao trabalhador cobrir suas necessidades e as de sua família, mas também a que contempla uma crescente participação na riqueza que o trabalho humano gera.
Porém, todos estes direitos seriam uma mera fantasia se não se garantisse aos trabalhadores a possibilidade de se organizar para defendê-los. Para tanto, a legislação deve garantir-lhes a liberdade de associação e a democracia interna. Sindicatos fortes e dirigentes sindicais autenticamente representativos, democraticamente eleitos, e que sejam a correia de transmissão das demandas de suas bases e não porta-vozes dos poderes constituídos, são a única garantia da efetividade dos direitos laborais. Os representantes sindicais deverão desfrutar da tutela necessária para o exercício de seus mandatos, sem temor a represálias que possam abalar seu emprego ou suas condições de trabalho. Além disso, deverá ser desqualificado todo tipo de discriminação ou sanção contra qualquer trabalhador ou ativista sindical, com motivo do exercício legítimo de seus direitos sindicais.
Infelizmente, observamos que em muitos dos países latinoamericanos são sistematicamente violados os Convênios 87, 98 e 102 da OIT, sobre Liberdade Sindical, Contratação Coletiva e Previdência Social. México é um claro exemplo disso. O poder político e o poder econômico, mediante práticas que podemos qualificar de mafiosas, tentam evitar que os trabalhadores possam constituir livremente suas organizações e eleger dirigentes autenticamente representativos. Na Colômbia, a situação é ainda pior, e a vida e a liberdade dos ativistas sindicais não vale nada.
É neste contexto que a ASSOCIAÇÃO LATINOAMERICANA DE ADVOGADOS LABORALISTAS propõe ao movimento operário e a todos os governos latinoamericanos a aprovação de uma CARTA SOCIOLABORAL LATINOAMERICANA, que contenha, entre outros, os seguintes direitos e garantias:
1) Livre circulação de pessoas no espaço comunitário, sem discriminação em razão da nacionalidade e com igualdade de direitos;
2) Relações de trabalho democráticas e sem discriminação de qualquer tipo, de modo tal que o trabalhador, cidadão na sociedade, também o seja na empresa;
3) Direito à verdade, e de informação e consulta, em todos os temas relativos à vida da empresa que possam afetar os trabalhadores;
4) Direito a um emprego estável, e proibição e nulidade da demissão arbitrária ou sem causa;
5) Direito a um trabalho digno e de qualidade que, como mínimo, responda às normas da Organização Internacional do Trabalho;
6) Direito a uma retribuição digna, que cubra todas as necessidades do trabalhador e de sua família e que, além disso, leve em conta os benefícios obtidos pelo empregador;
7) Direito a uma real e efetiva jornada limitada de trabalho. Os Estados deverão exercer com a energia necessária e com os meios adequados seu Poder de Polícia Trabalhista, para evitar toda transgressão aos limites horários máximos de serviço;
8) Direito à formação e capacitação profissional;
9) Direito à Previdência Social, que cubra as necessidades vitais do trabalhador e de sua família, frente às contingências sociais que possam afetar sua renda econômica. A Previdência Social deve ser função indelegável do Estado, fato pelo qual deverá se reverter o processo de privatização que sofreram nossos países na década de ´90;
10) Institucionalização de uma Renda Básica Cidadã, como direito de cada pessoa, sem importar sua raça, sexo, idade, condição civil ou social, de receber uma renda para atender suas necessidades vitais;
11) Direito à efetiva proteção da saúde e a vida do trabalhador, frente aos riscos do trabalho. A gestão do sistema de prevenção e reparação dos danos causados pelos sinistros de trabalho, não poderá estar nas mãos de operadores privados que atuem com fins de lucro;
12) Direito à organização sindical livre e democrática;
13) Direito à negociação coletiva, nacional e transnacional;
14) Direito de greve, abrangente das diversas formas de pressão e protesto, e sem restrições regulamentares que o limitem ou anulem;
15) Proteção laboral real e efetiva para os trabalhadores do serviço doméstico e do trabalho agrário;
16) Garantia de pagamento dos créditos laborais, estabelecendo-se a responsabilidade solidária de todos aqueles que na cadeia produtiva se aproveitam ou beneficiam da força de trabalho assalariada;
17) Criação de Fundos que cubram os casos de insolvência patronal;
18) Garantia de uma Justiça especializada em Direito de Trabalho, com um procedimento que recepte o princípio de proteção;
19) Tutela para os representantes e ativistas sindical contra qualquer represália que possa afetar sua família, seu emprego ou suas condições de trabalho;
20) Princípio de progressividade, que significa não apenas a proibição de retrocesso social, mas também o compromisso dos Estados de atingir progressivamente a plena efetividade dos direitos humanos laborais.
Nossa proposta não é uma utopia. Ela é o desafio de navegar com esperança, mesmo em um mar tormentoso, rumo à integração latinoamericana; rumo à Pátria Grande com que sonharam os heróis das lutas independentistas. Luta que não acabou e que nos encontra na primeira linha da frente, da batalha pela emancipação de nossos povos.
Cidade do México, 23 de outubro de 2009.

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