segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Um olhar para o passado pela ótica dos tribunais (Fonte: Gazeta do Povo)

"Relatos de processos judiciais registrados no país nos últimos séculos ajudam pesquisadores a estudar o cotidiano dos brasileiros

O mesmo processo que o juiz usa para julgar um determinado crime ou pedido de liberdade, serve para os historiadores aprenderem sobre os bastidores do Brasil, que dificilmente estão retratados em outros documentos. Com um olhar não sobre o caso julgado, mas a partir do que relatam minuciosamente as testemunhas, os pesquisadores conseguem detalhar aspectos pouco estudados do cotidiano da população menos privilegiada. A partir dos anos 1940, os historiadores passaram a usar com frequência os processos judiciais para estudar a história brasileira. O que restou dos processos do século 17 ao 19 estão arquivados, mesmo que, em alguns casos, precariamente.
Foi a partir de um processo criminal, por exemplo, que nos anos 1960 os historiadores descobriram que os escravos do século 18 poderiam processar seus senhores. “Isso mudou a maneira de contarmos a história da escravidão. Antes, esse aspecto era desconhecido”, afirma a professora do Departamento de História da Universidade Esta­­dual de Campinas (Unicamp) Silvia Hunold Lara. Em 1986, ela publicou um trabalho, baseado em processos judiciais, contando como funcionava a dominação do senhor sobre o escravo na fazenda. “Só consegui fazer isso porque os processos estavam acessíveis, mesmo que precariamente”, diz.
Paraná elimina processos por amostragem
Uma das principais críticas dos historiadores é com relação à eliminação de processos trabalhistas por amostragem, ou seja, separa-se a parte histórica e jurídica mais importante e o resto é eliminado. “Não é possível trabalhar com amostragem, precisamos das séries completas, porque só assim a pesquisa é qualitativamente relevante”, afirma a historiadora Silvia Hunold Lara.
Mas a dificuldade de armazenar tantos processos e a falta de verbas do governo federal, com relação ao arquivamento, são empecilhos que, por exemplo, o Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região (TRT9), em Curitiba, tem de enfrentar. “Temos dificuldades com espaço e falta de dinheiro, pois não basta arquivar, é preciso manutenção adequada para que os processos fiquem preservados”, afirma o presidente da comissão permanente de avaliação de documentos do TRT9, juiz Cassio Colombo Filho.

Comissão
Ele explica que existe uma comissão, inclusive formada por funcionários que são historiadores, que avalia criteriosamente quais os processos que podem ser eliminados. “Não eliminamos totalmente os autos. Os documentos, por exemplo, são preservados. Mas antes de eliminar, também tentamos contato com os envolvidos no processo para devolução”, explica. Colombo Filho diz ainda que está aberto a sugestões de como cuidar do patrimônio, mas que no momento precisa optar pelo que é viável, ou seja, não tem mais espaço para arquivar todos os processos e nem verba para ampliação do arquivo.

Castigo
Ao contrário do que muitos livros de História narraram, o castigo não era algo inexorável no século 18, principalmente nas fazendas de açúcar. “Havia um modo de dominar os escravos que temperava mercê e rigor. Se um senhor castigasse demais havia legitimidade aos escravos para a insurreição”, explica Silvia. Isso quer dizer que os escravos não apenas impunham limites à violência, como também defendiam certas conquistas. Em um processo criminal, a historiadora descobriu que os escravos tinham a liberdade para criar galinhas e cultivar certas roças, porque, no processo, o escravo dizia que havia matado o seu senhor porque ele estava furtando as aves dele. Em um outro processo, havia relatos de como uma briga começou. Os escravos diziam que tinham ido à cidade para uma festa e a desavença iniciou tarde da noite, quando estavam voltando. “Observar esses casos nos permite fazer perguntas que não imaginávamos, como, por exemplo, se os escravos podiam sair, então por que retornavam?”
Além de detalhar a vida cotidiana dos escravos, os processos judiciais mostram como era o interior das senzalas, a distribuição dos espaços e os cantos entoados pelos negros. Há também processos de despejos do século 19 que trazem fotografias de como era uma oficina de um alfaiate do Rio de Janeiro. Já os processos trabalhistas, por exemplo, contam a história das lutas sociais, dos modos de vida da população, as tensões travadas e as reivindicações dos direitos.

Descoberta
A historiadora Silvia Lara lembra que durante a pesquisa teve de ir a um porão de um Fórum de São Paulo e encontrou os processos às traças. “Alguns haviam tomado sol e chuva e estavam duros. É um descuido generalizado”, diz. Além da falta de cuidado, uma lei de 1987 tira o sono dos historiadores. Ela autoriza todos os processos trabalhistas “autos findos” (em que não cabe mais recurso), com mais de cinco anos, a serem eliminados.
Isto quer dizer que a história trabalhista, principalmente do século 20 a 21, corre o risco de ser parcialmente apagada, o que pode dificultar as pesquisas no futuro. “Os processos contam a história dos trabalhadores. São documentos públicos e precisam ser preservados integralmente”, afirma a desembargadora aposentada Magda Barros Biavaschi, que integra a comissão do Memorial de Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul. Além dos gaúchos, há iniciativas interessantes de preservação integral de processos trabalhistas em Minas Gerais e Pernambuco, mas ainda há muitos estados que estão eliminando parte dos processos. É o caso do Paraná.
Por causa da lei que autoriza, especificamente, a eliminação dos “autos findos” trabalhistas, historiadores e arquivistas propuseram uma lei especial em defesa dos processos e com a intenção de derrubar a lei de 1987. “Estamos perdendo a memória do próprio Judiciário e dos trabalhadores, que dificilmente têm fontes diretas. É preciso reverter esta situação”, afirma Silvia. Nos outros âmbitos judiciais, como o civil e o criminal, não existe lei autorizando a eliminação dos “autos findos”, mas também não há nada que exija a preservação adequada. “Se esta lei proposta for aceita, vai legislar sobre todos os âmbitos, para termos os processos preservados e disponíveis à população”, conclui a historiadora.

Conteúdo pode ser usado em sala de aula
Conhecer o conteúdo dos processos judiciais também ajuda os professores de História a levar para a sala de aula experiências humanas do passado. A historiadora Keila Grinberg, da Univer­­sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), lembra que os processos mostram, por exemplo, que existiram escravas –como Liberata – que processaram seus senhores (proprietários). “Soube disso depois de ler um processo”, conta Keila.
Esta experiência levou a pesquisadora a propor aos estudantes uma atividade curiosa: deveriam julgar se Liberata, propriedade do senhor Francisco José Rebello, seria solta ou não após o pedido de liberdade, sob a alegação de que estava sendo mal tratada em cativeiro. Os alunos fazem o julgamento depois de receberem algumas pistas de como era a cidade onde Liberata morava, como pensavam as pessoas daquela época, como viviam os escravos daquela região e como era uma carta de alforria (a professora leva o documento original).
“Os alunos julgam e depois mostramos o que aconteceu de verdade com a Liberata. É construtivo ensinar a história com base em documentos reais e originais que estão em arquivos públicos”, afirma. A Liberata foi uma escrava de Desterro (atual Florianópolis). Ela desistiu da ação em que pedia liberdade porque houve uma troca de escravas, na época (1813), e ela acabou passando a ser de um outro senhor. Ela teve filhos com este novo dono e os filhos dela entraram com um pedido de liberdade e a conquistaram. “Ter acesso a estes documentos é fundamental para entender a escravidão no país e o funcionamento da justiça brasileira. Existe uma infinidade de experiências humanas que precisam ser conhecidas”, diz Keila."

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