Uma nova etapa se iniciou para os familiares de desaparecidos da ditadura militar brasileira (1964-1985). Numa condenação internacional, inédita por crimes cometidos pelo regime militar, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) obriga o Brasil, no prazo de um ano, a investigar e, se for o caso, “punir graves violações de direitos humanos”.
Há 18 anos, os familiares de desaparecidos no Araguaia enfrentam a Justiça brasileira em âmbito internacional para esclarecer as mortes. Diante da falta de investigação, em 1995, enviaram a denúncia para a comissão da OEA, que acatou o caso no ano seguinte. Além da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo, o Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), o GTNM (Grupo Tortura Nunca Mais) do Rio de Janeiro fizeram a representação perante a Corte da OEA, que reúne 34 países latino-americanos, com exceção de Cuba e de Honduras.
A presidente da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo, Criméia Alice Schmidt Almeida, é uma das vítimas que comemora a decisão, com esperanças de finalmente ter acesso aos documentos da época e receber os restos mortais de seu marido, André Grabois, um dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. “Agora, é estar vigilante de que o Estado cumpra a resolução. Uma coisa que já fazemos há 40 anos”, disse a enfermeira aposentada.
Com a sentença da Cidh, o Estado brasileiro foi considerado culpado pelo desaparecimento forçado de pelo menos 70 pessoas, entre os anos de 1972 e 1974, por não ter realizado uma investigação penal com a finalidade de julgar e punir os responsáveis. Além de ser obrigado a investigar o caso, o Brasil deve também realizar um ato publico de reconhecimento de sua responsabilidade e publicar toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia e as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, especifica a sentença.
Leia aqui a sentença na íntegra
Para Victória Grabois, que perdeu três parentes na ditadura, “a sentença é um novo alento, não só para a Guerrilha do Araguaia, que vai abrir um precedente, mas para todos os casos”. Criadora da ONG Tortura Nunca Mais-RJ, ela, que perdeu também o primeiro marido na guerrilha, Gilberto Olímpio Maria, conta que “a falta de informação causou aos familiares dos guerrilheiros do Araguaia angústia, sofrimento e desconfiança nas instituições brasileiras. A sentença da Corte renova nossa esperança na Justiça”.
Assim como ela, Criméia espera que a decisão seja um passo importante na “verdadeira redemocratização do país, eliminando os entraves ditatoriais”, e que “possa significar um ponto final a tantas incertezas que há quase 40 anos marcam com angústia a nossa vida”. “A sentença condenou a situação de direitos humanos no Brasil, condenou a decisão do Estado brasileiro de não dar informações”, afirmou.
Na família de Criméia e de Victória, a ditadura deixou muitas cicatrizes. A irmã de Criméia, Maria Amélia de Almeida Teles, o marido César, e os filhos, que ainda eram crianças, Janaína e Edson, foram presos e torturados. Seu marido, André Grabois, irmão de Victória, foi assassinado em 14 de outubro de 1973 na Guerrilha do Araguaia em uma emboscada junto de outros com companheiros. O pai de André, Maurício Grabois, um dos dirigentes do PC do B (Partido Comunista do Brasil) e comandante-chefe da guerrilha, desapareceu e seu corpo nunca foi encontrado.
Criméia também foi militante da Guerrilha do Araguaia e foi presa pelo DOI-Codi de São Paulo em dezembro de 1972. “Fui torturada grávida, meu filho nasceu na prisão”, contou. “Mas não fui presa, fui sequestrada”, ressaltou. “Nunca fui apresentada à Justiça, nunca fui processada por causa da alegação que fazia o general [Antônio] Bandeira, de que a Guerrilha do Araguaia nunca existiu”.
Oficial da linha dura e anticomunista ferrenho, o general Antônio Bandeira comandou a repressão da Guerrilha do Araguaia, movimento armado organizado pelo PCdoB na região da divisa entre os atuais estados do Pará, Maranhão e Tocantins (na época, Goiás).
Para Criméia, o governo da presidente eleita, Dilma Rousseff, ex-militante contra a ditadura, que foi presa e torturada, deve permitir que o debate sobre o fim da anistia aos repressores avance. “Esses anos todos de impunidade levaram eles [militares] a ter uma postura arrogante. A nova presidenta terá dificuldades sim, mas espero que ela enfrente essas dificuldades. E espero que o novo Congresso, ao discutir a Comissão da Verdade, contribua com a decisão de fazer justiça [da CIDH], de punir os repressores”, espera Criméia.
O filho de Criméia e de André Grabois, João Carlos, afirmou que a sentença da Corte não é um revanche, mas de Justiça. “A sentença mostra que não estamos sozinhos, estamos procurando a nossa história, a história do povo brasileiro”, disse, emocionando outros familiares de desaparecidos que estavam presentes.“
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