Maximiliano
Nagl Garcez
Advogado de trabalhadores e entidades sindicais. Diretor para Assuntos
Legislativos da Associação Latino-Americana de Advogados Laboralistas - ALAL.
Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Ex-Bolsista Fulbright e
Pesquisador-Visitante na Harvard Law School. Email: max@advocaciagarcez.adv.br
1. Programa de Marina Silva defende com unhas e dentes a
terceirização ampla e irrestrita
Ao pesquisar a palavra
"terceirização" no Programa da candidata Marina Silva, li com extrema
preocupação os trechos abaixo (íntegra disponível em http://marinasilva.org.br/programa/),
que são muitíssimos parecidos com as propostas mais reacionárias e conservadoras
existentes hoje no Brasil visando prejudicar os trabalhadores (como por exemplo
o nefasto PL 4330):
Página 75: "...terceirização
de atividades leva a maior especialização produtiva, a maior divisão do trabalho e, consequentemente, a maior produtividade das empresas. Com
isso, o próprio crescimento do setor de serviços seria um motor do crescimento
do PIB per capita. Ambas as explicações salientam o papel do comércio e
serviços para o bem-estar da população. Mesmo assim, o setor encontra uma série de entraves ao seu
desenvolvimento. Há no Brasil um viés
contra a terceirização, e isso se traduz bem no nosso sistema tributário,
que impõe impostos como ISS e ICMS − em cascata ou cumulativos − em transações
que envolvem duas ou mais empresas. A
consequência: algumas atividades que poderiam ser terceirizadas por empresas
acabam realizadas internamente, em prejuízo da produtividade, porque essa
forma de tributação eleva os custos e tira a vantagem da operação."
E ainda que o trecho acima ainda fosse
suficientemente claro, logo à frente fica ainda mais evidente a defesa
escancarada da terceirização (contra a qual o movimento sindical e várias entidades
da sociedade civil organizada vem lutando):
Página 76: "Existe hoje no Brasil um número elevado de
disputas jurídicas sobre a terceirização de serviços com o argumento de que as
atividades terceirizadas são atividades fins das empresas. Isso gera perda de eficiência
do setor, reduzindo os ganhos de produtividade e privilegiando segmentos
profissionais mais especializados e de maior renda. O setor de serviços é mais penalizado por esse tipo de problema, ficando
mais exposto à consequente alocação ineficiente de recursos com perda de produtividade."
Segue a péssima proposta da candidata,
também à pág. 76: "Disciplinar a terceirização de atividades
com regras que a viabilizem, assegurando o equilíbrio entre os objetivos de
ganhos de eficiência e os de respeito às regras de proteção ao trabalho."
Qualquer trabalhador ou sindicato que conheça o mundo do trabalho
sabe que viabilizar a terceirização em todas as atividades de uma empresa, sem qualquer limite,
por definição significa um enorme desrespeito “às regras de
proteção ao trabalho”, como veremos a seguir.
2. O modelo precarizante proposto por Marina Silva viola a Constituição Federal
A Constituição Federal de 1988 se configura como
impedimento à eliminação e limitação do direitos trabalhistas e sindicais, defendida
pelo programa da candidata Marina Silva
e pelo PL 4330, de 2004. Tais propostas significam uma séria ameaça aos
trabalhadores, aos sindicatos, à sociedade e à democracia.
Veremos a seguir que é evidente a
inconstitucionalidade, injustiça e inconveniência de tais propostas.
A primeira inconstitucionalidade da proposta
de Marina Silva reside no princípio da igualdade, contido no art. 5º.,caput, da
Constituição Federal. Está inserido no rol dos direitos fundamentais do
cidadão, categoria de direitos que não estão afetos a restrições
infraconstitucionais, o que significa que não podem ser limitados pelo
ordenamento jurídico, seja quanto à regulamentação, efetivação ou exercício
desses direitos.
Vejamos a redação do caput do art. 5º: “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” (...) negritamos
Ao prever uma ampla e irrestrita terceirização, há
flagrante violação ao princípio da isonomia. A jurisprudência do E.
STF demonstra que a proposição, caso venha a ser transformada em lei (o que,
diga-se de passagem, consideramos altamente indesejável, ante sua completa
inadequação com nosso ordenamento jurídico), seria considerada manifestamente
inconstitucional: “Estabelece a Constituição em vigor, reproduzindo nossa tradição
constitucional, no art. 5º, caput (...). (...) De outra parte, no que concerne
aos direitos sociais, nosso sistema veda, no inciso XXX do art. 7º da
Constituição Federal, qualquer discriminação decorrente – além, evidentemente,
da nacionalidade – de sexo, idade, cor ou estado civil. Dessa maneira,
nosso sistema constitucional é contrário a tratamento discriminatório entre
pessoas que prestam serviços iguais a um empregador.” (RE 161.243,
Rel. Min. Carlos Velloso, voto do Min. Néri da Silveira, julgamento em
29-10-1996, Segunda Turma, DJ de 19-12-1997.) negritamos
O caput do art. 5º. deve ser interpretado em
conjunto com os seguintes incisos do art. 3º. da CF: “Art. 3º Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade
livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.”
O art. 1º da Constituição Federal Brasileira
coloca o valor social do trabalho, ao lado da dignidade da pessoa humana, como
bens juridicamente tutelados e como fundamento para a construção de um Estado
Democrático de Direito:
“Art. 1º A República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...) III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa.”
A interpretação e a aplicação do Direito do
Trabalho estão obrigatoriamente condicionadas aos princípios constitucionais de
valorização do trabalho e do trabalhador como fator inerente à dignidade da
pessoa humana. Ao se eleger a dignidade do ser humano como fundamento da
República Federativa do Brasil, constitucionalizam-se os princípios do direito
laboral, com força e imperatividade aptas a conferir ao trabalho e ao
trabalhador, o significado de sustentação do próprio sistema da nação brasileira.
Tal proceder efetiva o Estado Democrático de Direito, fazendo com que os
objetivos políticos decididos pela Constituição sejam atingidos por meio de
todo o ordenamento jurídico.
A proteção da dignidade da pessoa humana e do valor
social do trabalho impede que qualquer norma que a viole (como tenta fazer o PL
4330 e a terceirização ampla e irrestrita defendida por Marina Silva) seja
considera constitucional. Tal princípio impede qualquer atitude ou norma que
diminua o status da pessoa humana enquanto indivíduo, cidadão
e membro da comunidade. O tratamento dado ao terceirizado por Marina Silva,
visto somente como um mero fator de produção, viola frontalmente tais princípios
contidos no art. 1º. da Carta Magna.
3. Da ultrajante defesa de
terceirização de toda atividade empresarial no Programa de Marina Silva
A proposta de Marina Silva é clara: acabar com a
discussão atividade-fim e atividade-meio, permitindo a terceirização de qualquer atividade empresarial e de
qualquer setor de uma empresa.
Uma grande empresa, no modelo defendido por Marina
Silva, nem mesmo precisaria ter trabalhadores. Poderia ter apenas contratos com
outras empresas, que alugariam trabalhadores
para o empresário, reduzindo o obreiro a uma mera mercadoria. E estas outras
empresas terceirizadas, por sua vez, também não necessitariam ter
trabalhadores: poderiam alugá-los de
uma outra empresa, quarteirizada (ou quinterizada). Uso a expressão alugar pois infelizmente a proposta na prática acaba sendo o ultrajante
aluguel de pessoas (proibido desde a Lei Áurea), e não o que a candidata
eufemisticamente chamar ser “terceirização”.
A diferenciação atividade-fim e
atividade-meio serve como um limite claro à terceirização, e tem
permitido coibir tal prática por meio da Justiça do Trabalho. A análise
da atividade-fim é voltada à atuação da empresa tomadora de serviços.
Pela proposta de Marina Silva, não há limite para o
que a empresa tomadora de serviços pode terceirizar.
Ou seja: a empresa tomadora de serviços pode se
tornar apenas uma administradora do CNPJ da empresa, terceirizando
toda e qualquer atividade. E o trabalhador terceirizado poderá ser quarteirizado, quinterizado – ou
seja, transformado em uma mercadoria, o que vai contra o
princípio que determinou a fundação da OIT, da qual participou o Brasil: “O
trabalho não é uma mercadoria.”
4. Proposta de Marina Silva
é claramente antissindical
A proposta de Marina Silva
significa na prática que o empregador escolherá quais sindicatos representarão
seus trabalhadores, em clara violação à liberdade sindical. O que na verdade
pretende é a aniquilação do movimento sindical, que tem sido nas últimas
décadas uma das principas forças-motrizes da democracia, da sociedade civil
organizada e da resistência ao projeto autoritário-neoliberal. Por isso,
significa também uma disfarçada Reforma Política, a fim de silenciar os
trabalhadores e seus representantes.
Os dispositivos constitucionais citados no item 2
acima seriam violados, caso fosse permitida a terceirização de atividade-fim. O
TST já analisou de modo detalhado tal questão, em acórdão da E. SDI-1, tratando
exatamente dos reflexos malignos da terceirização ampla na estrutura sindical: “PROCESSO Nº
TST-E-RR-586341/1999.4 “De outro giro, a terceirização na esfera
finalística das empresas, além de atritar com o eixo fundamental da legislação
trabalhista, como afirmado, traria consequências imensuráveis no campo da
organização sindical e da negociação coletiva. O caso dos autos é
emblemático, na medida em que a empresa reclamada, atuante no setor de energia
elétrica, estaria autorizada a terceirizar todas as suas atividades, quer na
área fim, quer na área meio. Nessa hipótese, pergunta-se: a CELG, apesar de
beneficiária final dos serviços prestados, ficaria totalmente protegida e
isenta do cumprimento das normas coletivas pactuadas, por não mais responder
pelas obrigações trabalhistas dos empregados vinculados aos intermediários? Não
resta dúvida de que a consequência desse processo seria, naturalmente, o
enfraquecimento da categoria profissional dos eletricitários, diante
da pulverização das atividades ligadas ao setor elétrico e da consequente
multiplicação do número de empregadores. Todas essas questões estão em jogo e
merecem especial reflexão.”
Convém destacar que o STF coloca a liberdade sindical como predicado do
Estado Democrático de Direito: "A liberdade de associação, observada,
relativamente às entidades sindicais, a base territorial mínima – a área de um
Município –, é predicado do Estado Democrático de Direito. Recepção da
Consolidação das Leis do Trabalho pela Carta da República de 1988, no que
viabilizados o agrupamento de atividades profissionais e a dissociação, visando
a formar sindicato específico." (RMS 24.069, Rel. Min. Marco
Aurélio, julgamento em 22-3-2005, Primeira Turma, DJ de 24-6-2005.)
5. Da necessidade de impor limites à
terceirização, ante os prejuízos que traz aos trabalhadores e à sociedade
O fenômeno da terceirização é permitido por nosso
ordenamento jurídico somente quanto ao trabalho temporário (Lei. 6.019/74), de
vigilantes (Lei 7.102/83) e de serviços de limpeza e conservação (conforme a
Súmula 331 do TST).
Tal Súmula considera ilegal a terceirização da
atividade-fim da empresa. Ou seja, qualquer descentralização de atividades
deverá estar restrita a serviços auxiliares e periféricos à atividade principal
da empresa.
Uma adequada interpretação da Constituição Federal
também permite colocar sérios limites ao fenômeno da terceirização, por meio da
utilização dos princípios constitucionais da valorização do trabalho e da
dignidade humana, como vimos acima.
Vejamos alguns dos prejuízos que a terceirização
ampla e irrestrita defendida por Marina Silva traria aos trabalhadores e à
sociedade:
a) a destruição da capacidade dos sindicatos
de representarem os trabalhadores;
b) baixos salários e o desrespeito aos
direitos trabalhistas, com impactos negativos na economia, no consumo e na
receita da Previdência Social e do FGTS (usado primordialmente para
saneamento básico e habitação), com prejuízos a todos; nesse sentido, convém
mencionar as sábias palavras do magistrado José Nilton Pandelot, ex-presidente
da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho: “Eu diria que a terceirização não
é o futuro e sim a desgraça das relações de trabalho. Porque essa terceirização
se estabelece na forma de precarização. Ela se desvia da sua finalidade
principal. Não é para garantir a eficiência da empresa. É para reduzir o custo
da mão-de-obra. Se ela é precarizadora, vai determinar uma redução da renda do
trabalhador, vai diminuir o fomento à economia, diminuir a circulação de bens,
porque vai reduzir o dinheiro injetado no mercado. Há um equívoco muito grande
quando se pensa que a redução do valor da mão-de-obra beneficia de algum modo a
economia. Quem compra, quem movimenta a economia são os trabalhadores. Eles têm
que estar empregados e ganhar bem para os bens circularem no mercado. Pode não
ser evitável, mas se continuar dessa forma, com uma terceirização que serve
para a redução e a precarização da mão-de-obra, haverá um grande prejuízo à
cidadania brasileira e à sociedade de um modo geral”;
c) precarização do trabalho e o desemprego. A
alegada “geração de novos postos de trabalho” pela terceirização é
uma falácia: o que ocorre com tal fenômeno é a demissão de trabalhadores, com
sua substituição por “sub-empregados” (vide o exemplo da Argentina e da Espanha
nos anos 90);
d) aumento do número de acidentes do
trabalho envolvendo trabalhadores terceirizados, como já atestou o TST
no julgado supracitado;
e) prejuízos aos consumidores e à
sociedade, ante a profunda diminuição da qualidade dos serviços
prestados nas áreas de saúde, educação, segurança, energia, água e saneamento
(dentre inúmeros outros), que seriam fortemente afetados pela terceirização
ilegal;
f) prejuízos sociais profundos. A
ausência de um sistema adequado de proteção e efetivação dos direitos dos
trabalhadores, com a existência de um grande número de trabalhadores precarizados,
sem vínculo permanente, prejudica toda a sociedade, degradando o trabalho e
corroendo as relações sociais: “Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa
sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como
pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida
numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova
economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar
em lugar, de emprego em emprego. Se eu fosse explicar mais amplamente o dilema
de Rico, diria que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele,
sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos
outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável.” (SENNETT,
Richard. A Corrosão do Caráter: As Conseqüências Pessoais do Trabalho no
Novo Capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.
27).
6. Conclusão: a proposta de Marina Silva é uma série
ameaça aos trabalhadores, aos sindicatos e até mesmo à competitividade da
economia brasileira
Não se pode tratar o trabalhador como uma mera peça
sujeita a preço de mercado, transitória e descartável. A luta contra a
terceirização ampla e irrestrita (infelizmente proposta de modo veemente no
Programa da candidata Marina Silva), lembra à sociedade os princípios
fundamentais de solidariedade e valorização humana, que ela própria fez constar
do documento jurídico-político que é a Constituição Federal, e a necessidade de
proteger a democracia, a coisa pública e a qualidade do serviços públicos,
essenciais para o bem-estar da população.
A
candidata Marina Silva, ao apresentar opiniões frontalmente contrárias aos
trabalhadores e ao defender a terceirização ampla e irrestrita, ameaça até
mesmo a competitividade do Brasil, pois a implementação de tais temerosas
propostas:
-
criaria enorme quantidade de trabalhadores precarizados e descartáveis;
-
aumentaria a desigualdade social;
-
tornaria ainda mais frequentes os acidentes e mortes no trabalho;
-
diminuiria o consumo;
-
e por fim, prejudicaria não somente a produtividade e a economia, mas toda a sociedade
brasileira.
* Autorizada a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.
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