"A psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, em nota alusiva ao Dia Internacional da Mulher, lembra das mulheres vítimas da ditadura, todas jovens que "pertenceram à geração que lutou para conquistar a igualdade de direitos entre gêneros".
Leia a íntegra da nota:
Mesmos direitos, mesma coragem
Maria Rita Kehl*
"Nada causa mais horror à ordem que mulheres que lutam e sonham." José Martí
A melhor homenagem que a Comissão Nacional da Verdade poderia fazer neste 08 de março às mulheres que foram vítimas de maus tratos por agentes do Estado durante a ditadura, é a de dizer que elas não são nem mais, nem menos, merecedoras de homenagens que seus companheiros de militância. Afinal, aquelas jovens pertenceram a uma geração que lutou pela igualdade de direitos entre gêneros. Mulheres como Iara, Inês, Dina, Dilma, Heleny, Ana Rosa, Maria Lucia, Dodora, Maria Rosa e tantas outras, não se achavam nem mais nem menos corajosas que seus companheiros ao se engajarem em ações que visavam, pela força da palavra, da pressão coletiva ou das armas, libertar o Brasil da ditadura militar. Reações eventualmente caretas de alguns companheiros, remanescentes de gerações que ainda creditavam aos homens superioridades imaginárias, foram enfrentadas na prática cotidiana. Os perigos da militância, as agruras da clandestinidade, o risco iminente da morte, exigiram de homens e mulheres doses equivalentes de inteligência, idealismo, coragem, força moral, humor e amor à liberdade.
Quem se serviu de maneira aviltante das opressões estruturais de gênero foram os torturadores das militantes presas nas décadas de 1960 e 70. Foram estes soldados, delegados, sargentos e as mais diversas autoridades graduadas que, protegidos pela clandestinidade dos centros de tortura, desfrutaram do poder de ensinar às prisioneiras o lugar que lhes era reservado na velha/nova ordem do mundo. Não que a tortura sexual fosse reservada exclusivamente às mulheres; muitos ex-prisioneiros relatam também episódios de estupro e outros abusos, que além de proporcionar prazer a seus algozes, visavam rebaixar o torturado à condição feminina. Por outro lado, a coragem com que as prisioneiras enfrentaram a tortura indignava seus torturadores: "quem é essa vadia que não chora, não se ajoelha, não confessa tudo, não pede perdão? Como é possível que ela não se humilhe diante da superioridade da farda, das armas, da força masculina?"
Ainda faz sentido, hoje, refletir sobre a aliança psíquica entre autoritarismo e machismo que sustenta as formas mais atrozes de poder político. Uma aliança que ainda provoca reações violentas em torno da liberdade sexual feminina, do direito ao estudo e ao trabalho, do uso de contraceptivos, da participação política, hoje ainda divide sociedade a respeitos do uso de véus, da extirpação do clitóris, dos casamentos de conveniência, do direito das mulheres a se manifestar em público.
Da mesma forma que os poderes antidemocráticos ainda precisam da submissão feminina para se sustentar, não há ordem libertária que não passe pela aventura, sempre tensa mas também divertida, do companheirismo igualitário entre mulheres e homens."
Fonte: CNV
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