quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Ilicitude da terceirização no ramo urbanitário


Ilicitude da terceirização no ramo urbanitário

Maximiliano Nagl Garcez
Advogado de trabalhadores e de entidades sindicais em Brasília;  consultor em processo legislativo; Mestre em Direito pela UFPR; ex-Bolsista Fulbright e Pesquisador-Visitante na Harvard Law School. max@advocaciagarcez.adv.br

A terceirização nas áreas de energia, água e saneamento deve ser coibida com vigor, ante sua flagrante ilegalidade, e devido também aos sérios prejuízos que traz aos trabalhadores, aos consumidores e à sociedade:

1.        Ilegalidade e inconstitucionalidade
O fenômeno da terceirização é permitido por nosso ordenamento jurídico somente quanto ao trabalho temporário (Lei. 6.019/74), de vigilantes (Lei  7.102/83) e de serviços de limpeza e conservação (conforme a Súmula 331 do TST).
Tal Súmula sabiamente considera ilegal a terceirização da atividade-fim da empresa. Ou seja, qualquer descentralização de atividades deverá estar restrita a serviços auxiliares e periféricos à atividade principal da empresa.
Uma adequada interpretação da Constituição Federal também permite colocar sérios limites ao fenômeno da terceirização, por meio da utilização dos princípios constitucionais da valorização do trabalho e da dignidade humana.
No setor urbanitário, a admissibilidade da terceirização é ainda mais restrita: somente pode ocorrer nos serviços de segurança e de higiene e conservação. As atividades de energia elétrica, saneamento e água são serviços públicos, e não mera atividade econômica. São típicas de Estado, essenciais à manutenção da ordem pública, e certamente de interesse público.
E é esse interesse público, e não a busca desenfreada do lucro a qualquer custo, que deve determinar como tais serviços devem ser prestados. Assim já decidiu a Justiça do Trabalho, em processo tratando da terceirização pela Sanepar, do Paraná:  “O serviço executado pela SANEPAR é tipicamente público, pois sem saneamento básico a população não sobreviveria nas cidades e em qualquer aglomeramento de pessoas. É evidente que cabe ao poder público a atuação direta nas comunidades para instalar redes de água e esgoto, bem como para fazer a manutenção e os reparos nelas, quando necessário. Ao decidir "terceirizar" tal atividade, a Requerida burla a lei, pois deixa de realizar concurso público, forma democrática para o acesso a cargos e empregos públicos, ambicionados por grande parte da população.” 
2. Prejuízos aos trabalhadores e à sociedade. A terceirização no ramo urbanitário gera:
a) a destruição da capacidade dos sindicatos de representarem os trabalhadores,: segundo o TST:  “a terceirização na esfera finalística das empresas, além de atritar com o eixo fundamental da legislação trabalhista, como afirmado, traria consequências imensuráveis no campo da organização sindical e da negociação coletiva.(...). Não resta dúvida de que a consequência desse processo seria, naturalmente, o enfraquecimento da categoria profissional dos eletricitários, diante da pulverização das atividades ligadas ao setor elétrico e da consequente multiplicação do número de empregadores.” (E-RR-586.341/1999.4);
b) baixos salários e o desrespeito aos direitos trabalhistas, com impactos negativos na economia, no consumo e na receita da Previdência Social e do FGTS (usado primordialmente para saneamento básico e habitação), com prejuízos a todos; nesse sentido, convém mencionar as sábias palavras do magistrado José Nilton Pandelot, ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho:“Eu diria que a terceirização não é o futuro e sim a desgraça das relações de trabalho. Porque essa terceirização se estabelece na forma de precarização. Ela se desvia da sua finalidade principal. Não é para garantir a eficiência da empresa. É para reduzir o custo da mão-de-obra. Se ela é precarizadora, vai determinar uma redução da renda do trabalhador, vai diminuir o fomento à economia, diminuir a circulação de bens, porque vai reduzir o dinheiro injetado no mercado. Há um equívoco muito grande quando se pensa que a redução do valor da mão-de-obra beneficia de algum modo a economia. Quem compra, quem movimenta a economia são os trabalhadores. Eles têm que estar empregados e ganhar bem para os bens circularem no mercado. Pode não ser evitável, mas se continuar dessa forma, com uma terceirização que serve para a redução e a precarização da mão-de-obra, haverá um grande prejuízo à cidadania brasileira e à sociedade de um modo geral.”;  
c) precarização do trabalho e o desemprego. A alegada “geração de novos postos de trabalho” pela terceirização é uma falácia: o que ocorre com tal fenômeno é a demissão de trabalhadores, com sua substituição por “sub-empregados” (vide o exemplo da Argentina e da Espanha nos anos 90);    
d) aumento do número de acidentes do trabalho envolvendo trabalhadores terceirizados, como já atestou o TST no julgado supracitado;
e) prejuízos aos consumidores e à sociedade, ante a profunda diminuição da qualidade dos serviços prestados nas áreas de energia, água e saneamento;
f) prejuízos sociais profundos. A ausência de um sistema adequado de proteção e efetivação dos direitos dos trabalhadores, com a existência de um grande número de trabalhadores precarizados, sem vínculo permanente,  prejudica toda a sociedade, degradando o trabalho e corroendo as relações sociais: “Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego. Se eu fosse explicar mais amplamente o dilema de Rico, diria que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável.” (SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: As Conseqüências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 27). 

3. Conclusão.
Não se pode tratar o urbanitário como uma mera peça sujeita a preço de mercado, transitória e descartável. A luta contra a terceirização no setor elétrico, de água e saneamento deve também lembrar à sociedade os princípios fundamentais de solidariedade e valorização humana, que ela própria fez constar do documento jurídico-político que é a Constituição Federal, e a necessidade de proteger a coisa pública e a qualidade de tais serviços, essenciais para o bem-estar da população.


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