"A narrativa da direita para explicar a crise na Europa tem duas vertentes.
Primeiro, considera que os governos foram irresponsáveis nos gastos e, por isso, provocaram uma crise da dívida soberana.
Segundo, insiste que os altos custos salariais nos países da periferia europeia provocaram a destruição de sua competitividade e causaram um déficit insustentável na conta corrente. Supõe-se que isto tenha provocado os desequilíbrios estruturais entre economias superavitárias e países deficitários.
Ambas visões da crise estão equivocadas, mas a direita insiste em mantê-las como verdade absoluta e os meios de (des)informação martelaram tanto esta história que muita gente acabou acreditando que ela tem alguma ponta de verdade.
Para a direita, esta visão dos fatos é útil porque os governos e os trabalhadores se dão mal. Os primeiros gastaram além da conta, os segundos (por meio de seus sindicatos) distorceram os salários no mercado de trabalho. Ambos, governos e trabalhadores, devem, portanto, suportar o ajuste derivado da crise. Daí surge a ideia de que a austeridade e a desvalorização fiscal são medidas justas e corretivas. As duas ações afundaram a Europa na pior crise de sua história.
Os dados não apoiam a ideia de irresponsabilidade fiscal: em 2007, o ano em que a crise estala nos Estados Unidos, as contas públicas dos membros da União Europeia mostram um bom panorama.
O déficit público agregado na União Europeia era de 0,8% do PIB (e 0,6% na Zona do Euro). A maior parte dos países que depois sofreram impactos da crise de maneira mais forte tinha um bom desempenho fiscal e havia se ajustado aos critérios do Tratado de Maastricht e do Pacto de crescimento e de estabilidade.
Mas à medida que a crise afetava os setores reais da economia, as contas públicas começaram a se deteriorar: o menor crescimento afetou a receita tributária e os planos de estímulo aumentaram o gasto. Para 2008, o déficit público na UE e na Zona Euro passou a 2.3% e 1.9%, respectivamente. Ou seja, a redução da receita tributária é produto da crise, não sua causa.
Aqui entra a segunda vertente na cosmogonia direitista sobre a crise: é a ideia de que trabalhadores e sindicatos distorceram os salários, provocaram perdas da produtividade e isso levou à crise nas contas externas dos países da periferia europeia. Segundo este raciocínio, os custos trabalhistas na maior parte dos países da periferia europeia aumentaram muito mais do que na Alemanha e explicaria o déficit na conta corrente daqueles países.
O corolário de política econômica que se desprende deste diagnóstico é simples: é preciso impor restrições salariais. Mas agora o Banco Central Europeu (BCE) acabar de revelar um estudo sobre a relação entre o déficit na conta corrente e os custos salariais nos países da União Europeia. É uma análise que derruba todas as interpretações oficiais sobre a crise e as políticas aplicadas para enfrentá-la, em especial a política de austeridade fiscal.
Utilizando técnicas estatísticas padrão, o trabalho do BCE estabelece que, para o período 1995-2012, as mudanças no saldo da conta corrente precederam as mudanças nos custos salariais unitários. Ao mesmo tempo, a análise demonstra que as mudanças nos custos trabalhistas tiveram muito poucos efeitos sobre as mudanças nos saldos da conta corrente.
A deterioração nas contas externas dos países da periferia não se deveu aos aumentos nos custos salariais. Assim, não é certo que o problema nas contas externas se deva ao fato de os sindicatos pressionarem irresponsavelmente e isso levou à perda da competitividade.
Este ponto é importante: já são 23 os países europeus que assinaram o pacto Euro Plus, que está baseado na ideia de que a perda da competitividade (por aumentos salariais) explica os desequilíbrios entre países com superávit e aqueles com déficit. O Euro Plus estabelece que os países signatários devem adotar medidas para melhorar sua competitividade de custos. Uma vez mais se demonstra que as bases neoliberais deste pacto não têm fundamento.
Os dados revelam que a crise não se originou de uma postura irresponsável em matéria fiscal, e também não foi provocada por aumentos salariais insustentáveis. Pelo contrário, um dos fatores mais importantes é o dos fluxos do capital: o estudo do BCE conclui que os fluxos de capital estão mais relacionados à deterioração da competitividade. E isto não me surpreende: no contexto de uma atividade bancária em que as regulações foram quitadas, os créditos bancários e o boom imobiliário efetivamente geraram uma forte distorção salarial.
A conclusão é que é necessário controlar os fluxos de capital, mas a direita prefere castigar os trabalhadores em vez de limitar a capacidade do capital financeiro."
Fonte: Carta Maior
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