"Pardo, estatura mediana, suboficial. Por mais de quatro décadas, essas foram as únicas informações conhecidas sobre um dos principais torturadores dos porões do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), que funcionava junto à Base Aérea do Galeão. Presos políticos que estavam na carceragem à época denunciam com frequência a desenvoltura com que o suboficial “Abílio Alcântara”, de codinome “Pascoal”, participava dos interrogatórios sob tortura nas masmorras do Cisa. E dos guerrilheiros que por ali passaram e conheceram “Pascoal”, apenas um jamais saiu: Stuart Angel Jones. O ex-preso político Alex Polari de Alverga denuncia há 42 anos que presenciou o momento em que o amigo foi preso por agentes da Aeronáutica, na manhã de 14 de maio de 1971, em uma região do Grajaú, na Zona Norte do Rio. Entre eles, “Pascoal.”
“Abílio Alcântara”, porém, nunca existiu. Serviu apenas para esconder a verdadeira identidade do sargento Abílio Correa de Souza. Após o cruzamento de depoimentos de ex-presos com informações em bancos de dados nacionais e internacionais, O GLOBO chegou ao verdadeiro nome sob o qual se escondia o agente. Souza chegou a fazer cursos de inteligência de combate e contraespionagem na conhecida Escola das Américas, no Forte Gulick, no Panamá, em 1968. De acordo com o relato dos presos, ele seria o braço-direito do coronel Ferdinando Muniz de Farias, o “dr .Luis” — homem de confiança do brigadeiro Carlos Affonso Dellamora, comandante do Cisa. Ambos já amplamente denunciados por Alex Polari.
Agente estudou contraespionagem na Escola das Américas
Souza, de acordo com uma nova testemunha dos momentos finais da vida de Stuart, foi o último agente a falar com o filho da estilista Zuzu Angel, em sua agonia. A ex-presa política Maria Cristina de Oliveira Ferreira conta que não chegou a ver, mas ouviu os gemidos do dirigente do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), sua organização guerrilheira, ao longo da madrugada. Stuart murmurava seguidamente “vou morrer, vou morrer”. Em determinado momento, o suboficial Souza se aproximou.
— O “Pascoal" falou pra ele: “Deixa de frescura, Paulo (codinome de Stuart no MR-8). Você não vai morrer ainda não. Toma aqui um melhoral”. Pouco depois ele silenciou e eu ouvi o barulho semelhante à retirada de um corpo — revelou Maria Cristina.
Ela nunca foi ouvida antes sobre o assunto por ser acusada por ex-companheiros de militância de colaboração com o regime.
— Depois do que aconteceu com Stuart, a carceragem foi imediatamente esvaziada. Todos nós fomos transferidos para outros lugares — recorda-se.
Outro preso também confirma a liberdade com que Souza transitava pelos corredores da carceragem. Manoel Henrique Ferreira contou em relatório que integra o acervo do Brasil Nunca Mais que “Pascoal” pediu-lhe que reconhecesse a foto na carteira de identidade falsa com que Stuart foi preso. Em seguida, confirmou a prisão, sorrindo.
Outros dois novos nomes de agentes surgem no caso. Os cabos reformados Luciano José Marinho de Melo e Cláudio de Almeida Aguiar integravam as equipes do Cisa em 1971. A eles, foi confiada a missão de fazer o registro de nascimento do filho de uma presa do órgão, no início de 1972, na 11ª circunscrição de Inhaúma, apesar de a criança ter nascido no Hospital da Aeronáutica. Os nomes deles constam na certidão de nascimento como testemunhas.
Segundo outro preso, Luciano atuava como motorista das equipes de captura e, no dia em que Stuart foi preso, conduziu o carro no qual ele foi levado para um ponto onde estariam outros dois militantes do MR-8 — organização da qual Stuart era dirigente. Como os guerrilheiros não viram o preso, conseguiram sair do ponto ilesos, apesar do cerco.
Procurado, Luciano disse que foi apenas motorista do gabinete do ministro da Aeronáutica até 1984, emprestado ao brigadeiro Dellamora exclusivamente para o registro da criança. Ele pediu e obteve anista política em 2005 com base à portaria n.º 1.104-GM3/1964, que limitou o serviço dos cabos a oito anos. Desde 2011, o Ministério da Justiça está revisando o processo. O nome de Claudio é listado como torturador no projeto Brasil Nunca Mais, em um inquérito de 1970. Aguiar foi procurado em três diferentes endereços durante um mês, mas não foi localizado.
Entre os outros agentes envolvidos no desaparecimento de Stuart, pelo menos outros três também estudaram na mesma escola. O brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, responsável pela organização e criação do Cisa e então chefe da 3ª Zona Aérea, fez cursos com nomes semelhantes aos de Abilio Correa de Souza em 1967: inteligência militar e contraespionagem. Com extenso currículo e 11 condecorações, entre elas a principal da Força, o Mérito Aeronáutico como Cavaleiro, o coronel Muniz de Farias também fez o Curso de Informações para Oficiais Superiores nos EUA. O capitão Lucio Valle Barroso, outro envolvido, estudou inteligência militar para oficiais em 1970 e é apontado como analista de informações do Cisa.
SNI elaborou documento de 167 páginas dando Stuart como morto
Além dos militares da Aeronáutica, relatos de presos políticos e documentos inéditos localizados nos acervos do projeto Brasil Nunca Mais e do Arquivo Nacional em Brasília apontam que os policiais da Delegacia de Ordem Politica e Social do Rio participaram ativamente das operações de captura de integrantes do MR-8 — organização que Stuart dirigia — e que antecederam a prisão dele. Dois são apontados ainda como integrantes da equipe de interrogatório: Jair Gonçalves da Mota e Mario Borges de Araújo. Este chegou a receber a Medalha do Pacificador, honraria concedia pelo Exército em 1971.
O GLOBO ainda obteve acesso a um documento inédito do Serviço Nacional de Informações (SNI) pertencente ao Arquivo Nacional demonstrando que o desaparecimento de Stuart foi amplamente documentado pela repressão. O informe número 1.008, produzido em 14 de setembro de 1971, tem como assunto: “Stuart Angel Jones — Falecido”. O documento tem conteúdo classificado como confidencial e 167 páginas. “Apenso, encaminho documentação para fins de prontuário referente ao epigrafado, bem como de outros elementos subversivos arrolados nos processos de apuração de delitos cometidos por alguns deles”, informa o texto, que, no entanto, apresenta apenas três páginas.
Na “Informação Nº 4.057”, da Agência São Paulo do SNI, de 11 de setembro de 1975, o nome de Stuart aparece listado junto a outros 89 nomes de guerrilheiros mortos seguidos por datas das mortes. No caso dele, o dia apontado é 16 de maio de 1971, dois dias depois da prisão. O destino do corpo, no entanto, permanece desconhecido.
Stuart Angel Jones integrava a direção do MR-8 e havia participado de diversas ações armadas; o interrogatório tinha um objetivo claro: descobrir o paradeiro do capitão Carlos Lamarca.
No fim do ano, a cúpula da Aeronáutica foi substituída devido a pressões sobre o caso, após as denúncias da mãe de Stuart, a estilista Zuzu Angel. O desmonte final dos porões do regime, porém, não cortou os laços dos torturadores de Stuart. Pelo menos três deles (o coronel Muniz, o sargento Abílio e o cabo Cláudio Aguiar) trabalharam posteriormente na Transportadora Volta Redonda (TVR), uma das gigantes no setor do período. A sede regional da empresa, na Avenida Londres, Bonsucesso, era ponto de encontro dos agentes do Cisa.
Burnier, Dellamora, Muniz e Abílio já morreram. Parentes do suboficial foram localizados na Zona Norte do Rio, mas disseram desconhecer sua atuação na Inteligência da FAB. De acordo com esses parentes, o agente jamais comentou o trabalho em casa, e a família nunca teve contato com seus colegas da Base.
A Aeronáutica, que nunca admitiu a prisão do guerrilheiro, não quis comentar o caso. Por intermédio da Comunicação Social, informou que os documentos alusivos ao período do regime já foram entregues ao Arquivo Nacional."
Fonte: Jornal GGN
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