Nesta
quarta-feira (22/03), a Câmara dos Deputados votou em regime de urgência um
projeto de lei desengavetado das masmorras do Congresso Nacional – o PL 4.302
de 1998 – que modifica a lei do trabalho temporário e amplia a terceirização de
forma irrestrita e ilimitada.
O projeto de lei
de iniciativa do executivo à época segue agora para sanção presidencial, uma
vez que já tramitou na Câmara e no Senado, com substitutivos das duas casas. Caso
esse projeto seja sancionado, poderemos presenciar já nessa semana um dos mais
preocupantes retrocessos do ponto de vista dos direitos humanos e sociais e uma
derrota histórica à classe trabalhadora.
De fato, a
terceirização, tal como permitida hoje, ou seja, com as limitações impostas
pela jurisprudência por meio de Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho –
que proíbe a terceirização em atividades-fim – representa, na maioria dos
casos, um método de precarização das relações de trabalho.
Ao contrário de
moderno método de gestão organizacional, a realidade demonstra que, ao se
realizarem contratos de prestação de serviços e mão-de-obra com empresas
terceirizantes, o que está em jogo não é a qualidade dos serviços prestados,
mas o menor preço.
Para além de
gestão organizacional, o que se coloca para os tomadores do serviço é a
expansão dos lucros às custas da precarização das relações de trabalho. Com a
aprovação do projeto, essa realidade pode ficar ainda pior.
A terceirização hoje.
Atualmente, nos
termos da Súmula 331, TST, a terceirização é permitida somente quanto aos
serviços de vigilância, conservação e limpeza, e aqueles ligados à
atividade-meio do empregador, sendo vedada quanto as atividades-fim da empresa.
Com essas restrições, a terceirização atinge hoje em média 13 milhões de
trabalhadores, que recebem uma remuneração em média 24,7% menor que os efetivos
(considerados os mesmos cargos e função), além de se ativarem em jornadas de
trabalho 7,5% maior – sem contar horas extras ou banco de horas. Ainda, possuem
maior rotatividade no trabalho, em média de 53,5%; isto é, enquanto os
trabalhadores efetivos permanecem cerca de 5,6 anos em um emprego, os
terceirizados permanecem apenas 2,7 anos[1].
Como se não
bastasse, há uma incidência muito maior de acidentes de trabalho entre os
trabalhadores terceirizados, em comparação com os efetivos: dos cerca de 700
mil acidentes de trabalho que ocorrem todos os anos no Brasil (considerados
somente aqueles regularmente notificados), em média 70% se dão com empregados
terceirizados.
Além disso, dos
50 mil trabalhadores resgatados em condições análogas a de escravidão nos
últimos 20 anos, 90% eram terceirizados ou quarteirizados. Essa é a realidade
da terceirização hoje. Optar por ampliar essa realidade cruel e precária não é regulamentar a terceirização, mas
sim o trabalho escravo contemporâneo.
A verdade é que
ao contrário de dar segurança jurídica ou gerar empregos, a terceirização e sua
ampliação irrestrita vão produzir exatamente o oposto. Isto porque, trabalhando
o empregado terceirizado por mais horas e com menos direitos, a tendência é de
que o empregador passe a se utilizar de menos empregados para realizar o mesmo
trabalho. Ao optar por terceirizar, a consequência será o aumento do desemprego
e a redução geral dos salários da classe trabalhadora.
As consequências do PL 4.302/98: terceirização.
O PL 4.302/98, na
forma aprovada, parece querer “elevar” os níveis de proteção social das
trabalhadoras e trabalhadores aos da época da primeira Revolução Industrial.
Não há qualquer
limite para as atividades que possam ser terceirizadas. Uma escola, por
exemplo, poderá terceirizar seus professores; um hospital, seus médicos. E a
empresa terceirizada, poderá, ainda, quarteirizar quaisquer de suas atividades.
Trata-se, portanto, apenas de intermediação de mão-de-obra, sem qualquer
critério de especialização ou restrição quanto as atividades que possam ser
terceirizadas.
Além disso, a
terceirização na forma aprovada poderá se efetivar com “empresas” de apenas um
empregado, o que, a depender da interpretação dada ao dispositivo, poderá
implicar na regularização da chamada pejotização
e, por consequência, no fim dos direitos a férias, 13o salário,
FGTS, aviso prévio, horas extras e de todo o arcabouço legislativo trabalhista
que possui um empregado celetista contratado diretamente pela empresa tomadora
dos serviços.
A terceirização,
portanto, se revela em sua verdadeira forma, como método de precarização das
relações de trabalho e de reduzir o trabalhador a mera mercadoria, o que é rechaçado pelo
Direito Internacional do Trabalho, conforme Declaração de Filadélfia de 1944,
que estabeleceu como um dos princípios da Organização Internacional do
Trabalho, a máxima de que “trabalho não é mercadoria”.
Ainda, não se
verifica qualquer tipo de proteção quanto a discriminação nos locais de
trabalho derivada da terceirização, ou quanto a representação sindical,
mantendo a divisão da classe trabalhadora entre efetivos e terceirizados, que
enfraquece o poder dos sindicatos e possibilita que trabalhadores terceirizados
que exerçam mesma função que efetivos ou no mesmo local tenham acesso a menos
direitos e benefícios, revelando-se uma violação do princípio da isonomia
contido na Constituição da República, em seu artigo 5º, caput., e
reproduzindo a invisibilidade dos terceirizados.
O único ponto de
responsabilização da tomadora dos serviços restringe seus efeitos somente ao
período em que o trabalhador terceirizado prestou serviços à tomadora e, ainda
assim, impõe a responsabilidade subsidiária, dificultando, portanto, a
satisfação dos direitos dos trabalhadores terceirizados.
Por fim, o
projeto aprovado não restringe a terceirização à iniciativa privada e, nesse
aspecto, é ainda pior que o PLC 30/2015, abrindo espaço para a ampla
terceirização no setor público.
Como se observa,
a ampliação irrestrita da terceirização, ao contrário de regulamentar o
trabalho terceirizado ou gerar empregos, vai gerar a completa desregulamentação
do mercado de trabalho, pois não haverá qualquer limite para a terceirização de
mão de obra. Nesses termos, o que se produzirá será desemprego em massa e
redução geral dos salários da classe trabalhadora e não o contrário. Somente a
mobilização da classe trabalhadora e dos movimentos sociais será capaz de fazer
frente a esse cenário de destruição dos direitos.
As consequências do PL 4.302/98: trabalho temporário.
No tocante ao
trabalho temporário, que em essência é também terceirização de mão de obra, o
PL 4302/98 representa um aprofundamento da precarização do trabalho nessa
modalidade. Em primeiro lugar, o projeto suprime a restrição legislativa que
destinava o trabalho temporário somente às empresas urbanas, o que gerará uma
precarização ainda maior do trabalho rural.
Em segundo lugar,
acaba com a própria concepção de trabalhador temporário, ao defini-lo não mais
como aquele trabalho decorrente de um acréscimo extraordinário de serviços ou
da necessidade transitória de substituição de pessoal regular e permanente,
para enquadrá-lo em qualquer tipo de demanda intermitente, periódica ou
sazonal, ainda que previsível.
Além disso,
amplia o tempo máximo para a contratação de um trabalhador temporário, de três
para seis meses, com possibilidade de prorrogação ou alteração do tempo por
meio de acordo ou negociação coletiva.
Por fim, diminui
consideravelmente as exigências de capital social mínimo para constituição de
empresa de trabalho temporário. Hoje, a lei impõe que para se constituir uma
empresa de trabalho temporário deve se provar capital social mínimo de 500
vezes o salário mínimo vigente no País, ou R$ 468.500,00, enquanto o PL 4.302/98,
diminui referido valor para R$ 100.000,00 (cem mil reais), em números
absolutos.
Ou seja, suprime uma
das garantias de cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias por
parte da empresa de trabalho temporário, que é o capital social compatível com
o trabalho empregado.
Como se observa,
a aprovação de referido projeto de lei pode representar um duro retrocesso
quanto aos direitos sociais conquistados pelos trabalhadores nas últimas
décadas, principalmente com relação ao patamar mínimo civilizatório que
representa a Constituição de 1988.
A lógica
econômica quer submeter o direito e a vida dos trabalhadores, em benefício
único e exclusivo dos grandes empresários que, embora não sejam os maiores
empregadores no País – pequenas e microempresas empregam 60% da mão de obra
–, são os recordistas em ações trabalhistas.
A esse respeito,
é importante ressaltar que o elevado número de ações na justiça do trabalho não
é decorrente de uma pretensa legislação protetiva que o Brasil assegura a seus
trabalhadores, mas sim ao descumprimento de normas básicas pelos empregadores,
como verbas rescisórias, supressão de intervalo para refeição e descanso e
horas extras não pagas.
A aprovação do
projeto às pressas na Câmara demonstra que longe de representar o povo, esses
indivíduos parecem ser prepostos das grandes empresas, atuando para aprovar
leis que permitam aos grandes empresários a ampliação da superexploração do
trabalho e sua impunidade, diante da violação reiterada de direitos.
Não por outra
razão houve a destituição forçada de uma presidenta legitimamente eleita, com o
novo governo aprovando diversas medidas antipopulares e rasgando o pacto social
construído em 1988.
Prejuízos aos trabalhadores e à sociedade.
A aprovação do PL 4302 será
desastrosa não apenas para a classe trabalhadora, mas também para toda a
sociedade, pois gerará:
a) a destruição da capacidade dos
sindicatos de representarem os trabalhadores, segundo
o TST: “a terceirização na esfera finalística das empresas, além de atritar com
o eixo fundamental da legislação trabalhista, como afirmado, traria consequências
imensuráveis no campo da organização sindical e da negociação coletiva (...).
Não resta dúvida de que a consequência desse processo seria, naturalmente, o
enfraquecimento da categoria profissional dos eletricitários, diante da
pulverização das atividades ligadas ao setor elétrico e da consequente
multiplicação do número de empregadores.” (E-RR-586.341/1999.4);
b) baixos salários e o desrespeito aos
direitos trabalhistas, com impactos negativos na economia, no consumo e na
receita da Previdência Social e do FGTS (usado primordialmente para
saneamento básico e habitação), com prejuízos a todos; nesse sentido, convém
mencionar as sábias palavras do magistrado José Nilton Pandelot,
ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho: “Eu
diria que a terceirização não é o futuro e sim a desgraça das relações de
trabalho. Porque essa terceirização se estabelece na forma de precarização. Ela
se desvia da sua finalidade principal. Não é para garantir a eficiência da
empresa. É para reduzir o custo da mão-de-obra. Se ela é precarizadora, vai
determinar uma redução da renda do trabalhador, vai diminuir o fomento à
economia, diminuir a circulação de bens, porque vai reduzir o dinheiro injetado
no mercado. Há um equívoco muito grande quando se pensa que a redução do valor
da mão-de-obra beneficia de algum modo a economia. Quem compra, quem movimenta
a economia são os trabalhadores. Eles têm que estar empregados e ganhar bem
para os bens circularem no mercado. Pode não ser evitável, mas se continuar
dessa forma, com uma terceirização que serve para a redução e a precarização da
mão-de-obra, haverá um grande prejuízo à cidadania brasileira e à sociedade de
um modo geral”;
c) precarização do trabalho e o desemprego. A
alegada “geração de novos postos de trabalho”
pela terceirização é uma falácia: o que ocorre com tal fenômeno é a demissão de
trabalhadores, com sua substituição por “sub-empregados” (vide o exemplo da
Argentina e da Espanha nos anos 90);
d) aumento do número de acidentes do trabalho envolvendo
trabalhadores terceirizados, como já atestou o TST no julgado supracitado;
e) prejuízos aos consumidores e à sociedade, ante a profunda
diminuição da qualidade dos serviços prestados nas áreas de energia, água e
saneamento, que seriam fortemente afetados pela terceirização ilegal;
f) prejuízos sociais profundos. A
ausência de um sistema adequado de proteção e efetivação dos direitos dos
trabalhadores, com a existência de um grande número de trabalhadores
precarizados, sem vínculo permanente, prejudica toda a sociedade, degradando o
trabalho e corroendo as relações sociais: “Como se podem buscar
objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter
relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de
identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e
fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a
experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego. Se
eu fosse explicar mais amplamente o dilema de Rico, diria que o capitalismo de
curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas qualidades de caráter que
ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade
sustentável.” (SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: As Conseqüências
Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de
Janeiro: Record, 1999, p. 27).
Conclusão.
Não se pode tratar o trabalhador como uma mera peça
sujeita a preço de mercado, transitória e descartável. A luta contra a
terceirização deve também lembrar à sociedade os princípios fundamentais de
solidariedade e valorização humana, que ela própria fez constar do documento
jurídico-político que é a Constituição Federal, e a necessidade de proteger a
democracia, a coisa pública e a qualidade dos serviços públicos, essenciais
para o bem-estar da população.
Maximiliano Nagl Garcez, Advogado sindical e consultor em processo legislativo. Coordenador
Geral da Advocacia Garcez. Diretor p/ Assuntos Legislativos da ALAL.
Ex-consultor jurídico do Pres. do Parlamento de Timor-Leste. Mestre pela
UFPR. Foi Bolsista Fulbright e Pesquisador-Visitante na Harvard Law
School. Integrante da coordenação do Fórum Permanente em Defesa dos
Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização.
Felipe Gomes da Silva Vasconcellos, Advogado
de entidades sindicais, Mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade
Social pela Universidade de São Paulo. Membro da Red
Eurolatinoamericana de análisis de trabajo y sindicalismo.
[1] Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha: /
dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas
para garantir a igualdade de direitos / Secretaria. Nacional de Relações de
Trabalho e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
- São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2014.
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