quarta-feira, 22 de março de 2017

Em defesa do emprego, é necessário derrotar a terceirização e o PL 4302/98.



Nesta quarta-feira (22/03), a Câmara dos Deputados votou em regime de urgência um projeto de lei desengavetado das masmorras do Congresso Nacional – o PL 4.302 de 1998 – que modifica a lei do trabalho temporário e amplia a terceirização de forma irrestrita e ilimitada.
O projeto de lei de iniciativa do executivo à época segue agora para sanção presidencial, uma vez que já tramitou na Câmara e no Senado, com substitutivos das duas casas. Caso esse projeto seja sancionado, poderemos presenciar já nessa semana um dos mais preocupantes retrocessos do ponto de vista dos direitos humanos e sociais e uma derrota histórica à classe trabalhadora.
De fato, a terceirização, tal como permitida hoje, ou seja, com as limitações impostas pela jurisprudência por meio de Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho – que proíbe a terceirização em atividades-fim – representa, na maioria dos casos, um método de precarização das relações de trabalho.
Ao contrário de moderno método de gestão organizacional, a realidade demonstra que, ao se realizarem contratos de prestação de serviços e mão-de-obra com empresas terceirizantes, o que está em jogo não é a qualidade dos serviços prestados, mas o menor preço.
Para além de gestão organizacional, o que se coloca para os tomadores do serviço é a expansão dos lucros às custas da precarização das relações de trabalho. Com a aprovação do projeto, essa realidade pode ficar ainda pior.

A terceirização hoje.
Atualmente, nos termos da Súmula 331, TST, a terceirização é permitida somente quanto aos serviços de vigilância, conservação e limpeza, e aqueles ligados à atividade-meio do empregador, sendo vedada quanto as atividades-fim da empresa. Com essas restrições, a terceirização atinge hoje em média 13 milhões de trabalhadores, que recebem uma remuneração em média 24,7% menor que os efetivos (considerados os mesmos cargos e função), além de se ativarem em jornadas de trabalho 7,5% maior – sem contar horas extras ou banco de horas. Ainda, possuem maior rotatividade no trabalho, em média de 53,5%; isto é, enquanto os trabalhadores efetivos permanecem cerca de 5,6 anos em um emprego, os terceirizados permanecem apenas 2,7 anos[1].
Como se não bastasse, há uma incidência muito maior de acidentes de trabalho entre os trabalhadores terceirizados, em comparação com os efetivos: dos cerca de 700 mil acidentes de trabalho que ocorrem todos os anos no Brasil (considerados somente aqueles regularmente notificados), em média 70% se dão com empregados terceirizados.
Além disso, dos 50 mil trabalhadores resgatados em condições análogas a de escravidão nos últimos 20 anos, 90% eram terceirizados ou quarteirizados. Essa é a realidade da terceirização hoje. Optar por ampliar essa realidade cruel e precária não é regulamentar a terceirização, mas sim o trabalho escravo contemporâneo.
A verdade é que ao contrário de dar segurança jurídica ou gerar empregos, a terceirização e sua ampliação irrestrita vão produzir exatamente o oposto. Isto porque, trabalhando o empregado terceirizado por mais horas e com menos direitos, a tendência é de que o empregador passe a se utilizar de menos empregados para realizar o mesmo trabalho. Ao optar por terceirizar, a consequência será o aumento do desemprego e a redução geral dos salários da classe trabalhadora.

As consequências do PL 4.302/98: terceirização.
O PL 4.302/98, na forma aprovada, parece querer “elevar” os níveis de proteção social das trabalhadoras e trabalhadores aos da época da primeira Revolução Industrial.
Não há qualquer limite para as atividades que possam ser terceirizadas. Uma escola, por exemplo, poderá terceirizar seus professores; um hospital, seus médicos. E a empresa terceirizada, poderá, ainda, quarteirizar quaisquer de suas atividades. Trata-se, portanto, apenas de intermediação de mão-de-obra, sem qualquer critério de especialização ou restrição quanto as atividades que possam ser terceirizadas.
Além disso, a terceirização na forma aprovada poderá se efetivar com “empresas” de apenas um empregado, o que, a depender da interpretação dada ao dispositivo, poderá implicar na regularização da chamada pejotização e, por consequência, no fim dos direitos a férias, 13o salário, FGTS, aviso prévio, horas extras e de todo o arcabouço legislativo trabalhista que possui um empregado celetista contratado diretamente pela empresa tomadora dos serviços.
A terceirização, portanto, se revela em sua verdadeira forma, como método de precarização das relações de trabalho e de reduzir o trabalhador a mera mercadoria, o que é rechaçado pelo Direito Internacional do Trabalho, conforme Declaração de Filadélfia de 1944, que estabeleceu como um dos princípios da Organização Internacional do Trabalho, a máxima de que “trabalho não é mercadoria”.
Ainda, não se verifica qualquer tipo de proteção quanto a discriminação nos locais de trabalho derivada da terceirização, ou quanto a representação sindical, mantendo a divisão da classe trabalhadora entre efetivos e terceirizados, que enfraquece o poder dos sindicatos e possibilita que trabalhadores terceirizados que exerçam mesma função que efetivos ou no mesmo local tenham acesso a menos direitos e benefícios, revelando-se uma violação do princípio da isonomia contido na Constituição da República, em seu artigo 5º, caput., e reproduzindo a invisibilidade dos terceirizados.
O único ponto de responsabilização da tomadora dos serviços restringe seus efeitos somente ao período em que o trabalhador terceirizado prestou serviços à tomadora e, ainda assim, impõe a responsabilidade subsidiária, dificultando, portanto, a satisfação dos direitos dos trabalhadores terceirizados.
Por fim, o projeto aprovado não restringe a terceirização à iniciativa privada e, nesse aspecto, é ainda pior que o PLC 30/2015, abrindo espaço para a ampla terceirização no setor público.
Como se observa, a ampliação irrestrita da terceirização, ao contrário de regulamentar o trabalho terceirizado ou gerar empregos, vai gerar a completa desregulamentação do mercado de trabalho, pois não haverá qualquer limite para a terceirização de mão de obra. Nesses termos, o que se produzirá será desemprego em massa e redução geral dos salários da classe trabalhadora e não o contrário. Somente a mobilização da classe trabalhadora e dos movimentos sociais será capaz de fazer frente a esse cenário de destruição dos direitos.

As consequências do PL 4.302/98: trabalho temporário.
No tocante ao trabalho temporário, que em essência é também terceirização de mão de obra, o PL 4302/98 representa um aprofundamento da precarização do trabalho nessa modalidade. Em primeiro lugar, o projeto suprime a restrição legislativa que destinava o trabalho temporário somente às empresas urbanas, o que gerará uma precarização ainda maior do trabalho rural.
Em segundo lugar, acaba com a própria concepção de trabalhador temporário, ao defini-lo não mais como aquele trabalho decorrente de um acréscimo extraordinário de serviços ou da necessidade transitória de substituição de pessoal regular e permanente, para enquadrá-lo em qualquer tipo de demanda intermitente, periódica ou sazonal, ainda que previsível.
Além disso, amplia o tempo máximo para a contratação de um trabalhador temporário, de três para seis meses, com possibilidade de prorrogação ou alteração do tempo por meio de acordo ou negociação coletiva.
Por fim, diminui consideravelmente as exigências de capital social mínimo para constituição de empresa de trabalho temporário. Hoje, a lei impõe que para se constituir uma empresa de trabalho temporário deve se provar capital social mínimo de 500 vezes o salário mínimo vigente no País, ou R$ 468.500,00, enquanto o PL 4.302/98, diminui referido valor para R$ 100.000,00 (cem mil reais), em números absolutos.
Ou seja, suprime uma das garantias de cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias por parte da empresa de trabalho temporário, que é o capital social compatível com o trabalho empregado.
Como se observa, a aprovação de referido projeto de lei pode representar um duro retrocesso quanto aos direitos sociais conquistados pelos trabalhadores nas últimas décadas, principalmente com relação ao patamar mínimo civilizatório que representa a Constituição de 1988.
A lógica econômica quer submeter o direito e a vida dos trabalhadores, em benefício único e exclusivo dos grandes empresários que, embora não sejam os maiores empregadores no País – pequenas e microempresas empregam 60% da mão de obra –, são os recordistas em ações trabalhistas.
A esse respeito, é importante ressaltar que o elevado número de ações na justiça do trabalho não é decorrente de uma pretensa legislação protetiva que o Brasil assegura a seus trabalhadores, mas sim ao descumprimento de normas básicas pelos empregadores, como verbas rescisórias, supressão de intervalo para refeição e descanso e horas extras não pagas.
A aprovação do projeto às pressas na Câmara demonstra que longe de representar o povo, esses indivíduos parecem ser prepostos das grandes empresas, atuando para aprovar leis que permitam aos grandes empresários a ampliação da superexploração do trabalho e sua impunidade, diante da violação reiterada de direitos.
Não por outra razão houve a destituição forçada de uma presidenta legitimamente eleita, com o novo governo aprovando diversas medidas antipopulares e rasgando o pacto social construído em 1988.

Prejuízos aos trabalhadores e à sociedade.
A aprovação do PL 4302 será desastrosa não apenas para a classe trabalhadora, mas também para toda a sociedade, pois gerará:
a) a destruição da capacidade dos sindicatos de representarem os trabalhadores, segundo o TST: “a terceirização na esfera finalística das empresas, além de atritar com o eixo fundamental da legislação trabalhista, como afirmado, traria consequências imensuráveis no campo da organização sindical e da negociação coletiva (...). Não resta dúvida de que a consequência desse processo seria, naturalmente, o enfraquecimento da categoria profissional dos eletricitários, diante da pulverização das atividades ligadas ao setor elétrico e da consequente multiplicação do número de empregadores.” (E-RR-586.341/1999.4);
b) baixos salários e o desrespeito aos direitos trabalhistas, com impactos negativos na economia, no consumo e na receita da Previdência Social e do FGTS (usado primordialmente para saneamento básico e habitação), com prejuízos a todos; nesse sentido, convém mencionar as sábias palavras do magistrado José Nilton Pandelot, ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho: “Eu diria que a terceirização não é o futuro e sim a desgraça das relações de trabalho. Porque essa terceirização se estabelece na forma de precarização. Ela se desvia da sua finalidade principal. Não é para garantir a eficiência da empresa. É para reduzir o custo da mão-de-obra. Se ela é precarizadora, vai determinar uma redução da renda do trabalhador, vai diminuir o fomento à economia, diminuir a circulação de bens, porque vai reduzir o dinheiro injetado no mercado. Há um equívoco muito grande quando se pensa que a redução do valor da mão-de-obra beneficia de algum modo a economia. Quem compra, quem movimenta a economia são os trabalhadores. Eles têm que estar empregados e ganhar bem para os bens circularem no mercado. Pode não ser evitável, mas se continuar dessa forma, com uma terceirização que serve para a redução e a precarização da mão-de-obra, haverá um grande prejuízo à cidadania brasileira e à sociedade de um modo geral”;
c) precarização do trabalho e o desemprego. A alegada “geração de novos postos de trabalho” pela terceirização é uma falácia: o que ocorre com tal fenômeno é a demissão de trabalhadores, com sua substituição por “sub-empregados” (vide o exemplo da Argentina e da Espanha nos anos 90);
d) aumento do número de acidentes do trabalho envolvendo trabalhadores terceirizados, como já atestou o TST no julgado supracitado;
e) prejuízos aos consumidores e à sociedade, ante a profunda diminuição da qualidade dos serviços prestados nas áreas de energia, água e saneamento, que seriam fortemente afetados pela terceirização ilegal;
f) prejuízos sociais profundos. A ausência de um sistema adequado de proteção e efetivação dos direitos dos trabalhadores, com a existência de um grande número de trabalhadores precarizados, sem vínculo permanente, prejudica toda a sociedade, degradando o trabalho e corroendo as relações sociais: “Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego. Se eu fosse explicar mais amplamente o dilema de Rico, diria que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável.” (SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: As Conseqüências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 27).

Conclusão.
Não se pode tratar o trabalhador como uma mera peça sujeita a preço de mercado, transitória e descartável. A luta contra a terceirização deve também lembrar à sociedade os princípios fundamentais de solidariedade e valorização humana, que ela própria fez constar do documento jurídico-político que é a Constituição Federal, e a necessidade de proteger a democracia, a coisa pública e a qualidade dos serviços públicos, essenciais para o bem-estar da população. 



Maximiliano Nagl Garcez, Advogado sindical e consultor em processo legislativo. Coordenador Geral da Advocacia Garcez. Diretor p/ Assuntos Legislativos da ALAL. Ex-consultor jurídico do Pres. do Parlamento de Timor-Leste. Mestre pela UFPR. Foi Bolsista Fulbright e Pesquisador-Visitante na Harvard Law School. Integrante da coordenação do Fórum Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização.

Felipe Gomes da Silva Vasconcellos, Advogado de entidades sindicais, Mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo. Membro da Red Eurolatinoamericana de análisis de trabajo y sindicalismo.



[1] Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha: / dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos / Secretaria. Nacional de Relações de Trabalho e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. - São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2014.